Entrevista: Fábio Kabral

O autor do livro Ritos de Passagem nos conta um pouco sobre sua obra

Thiago Henrique e Wigde Arcangelo

Castro Alves, conhecido como o "poeta dos escravos" clama nas estrofes de Navio Negreiro que os heróis do Novo Mundo liberte os escravizados:

"Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca! esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!"

O que Castro Alves ignorava, e que muitos ainda ignoram, é que os africanos possuiam (e possuem) seus próprios heróis.

Anos separam o poeta dos dias de hoje, novas formas de pensar e enxergar o mundo surgiram. Mesmo assim a representatividade negra nos meios culturais mainstream ainda é deficiente. O que começa a mudar com a facilidade trazida pela internet de encontrar obras antes com pouca visibilidade. Nesse cenários, autores negros encontram espaço para publicarem suas obras.

Fábio Kabral é um desses casos. O auto intitulado herói com rosto africano lançou Ritos de Passagem onde mistura seu gosto por histórias em quadrinhos e RPG com sua ancestralidade, religião e a cultura africana.

Kabral nos contou as influências para escrever sua ficção especulativa, abordou a questão do espaço negro no mercado editorial e falou sobre afrofuturismo.

Como foi a pesquisa para escrever o Ritos de Passagem? Quais foram as influências e de onde surgiu a ideia?

R: A base de pesquisa é a minha própria vida. Nada de muito extraordinário. Escrever é registrar momentos, e os momentos estão sempre mudando. Criei a primeira personagem, Kinemara, por volta de 2003, e desde então muita coisa aconteceu, e a personagem mudou junto. Além das vivências, houve leituras. Pinceladas de livros sobre o Continente que consegui nas faculdades por onde estudei, quando despertou intenso interesse da minha parte, e também de escritores luso-africanos. E também gibis, livros de RPG, videogames. Pessoas. Pessoas são sempre uma fonte maravilhosa de pesquisa, suas histórias, escolhas, realidades. Parece genérico, mas a resposta honesta é essa.

Parece natural que negros escrevam sobre sua própria ótica, mas nem sempre é assim que acontece. O que levou você a escrever ficção especulativa a partir da tradição de certos povos africanos muitas vezes ignoradas por nós?

R: Acredito que escritores, no fundo, sempre escrevem sobre si mesmos. Sempre. Mesmo que usem outros nomes e outras realidades supostamente diferentes desta em que vivemos, é sempre um relato sobre si, sobre como enxerga o mundo e como sente os universos internos que fervilham dentro de todos nós. Dessa forma, nada mais natural escrever sobre mim, sobre os sonhos dos meus ancestrais. Muitas vezes, no passado, pontuei que me vejo representado nos filmes, gibis, livros, e sempre me falavam: "Para de reclamar e faz você mesmo!". Então, estou fazendo. Tenho fé que possa inspirar outros a fazerem o mesmo, da mesma forma que os nossos estão sempre nos inspirando a ser algo mais. Nós é quem devemos contar a nossa própria história.

Seu livro toca em pontos que vão além da causa negra, o papel de gênero também é uma coisa que fica muito marcada. Como você vê o movimento feminista no Brasil? Como é o mercado editorial para escritoras negras? E como a mulher é representada na literatura fantástica?

R: Não falo sobre a causa feminista. Acredito que esse é o papel das mulheres. O que me toca é a questão das mulheres negras, que aparecem ainda menos que os homens negros, tanto na ficção quanto na vida; se o escritor negro quase não tem espaço, a escritora negra é praticamente inexistente... quer dizer, se estamos falando de mercado editorial dito "mainstream". Tem muita coisa sendo feita por escritoras negras e comercializada por outros meios, outras vias. Outras possibilidades são possíveis, não há motivos pra dependermos dos mesmos de sempre. Quanto a representação das mulheres na literatura fantástica, só posso resumir como deprimente; muita coisa ainda precisa mudar.

Fomos acostumados a sempre imaginar personagens/pessoas brancas quando são descritas mas a cor não é citada. Qual é a importância do afrofuturismo nesse cenário?

R: Uma amiga beta leu o livro afrofuturista que estou finalizando neste instante e disse que o único personagem que ela não conseguiu imaginar negro foi o "playboyzinho". Isso porque me dei ao trabalho de descrever a todo o momento que todos os personagens são negros. Acho incômodo ter de descrever fisicamente os personagens a todo instante, mas, enquanto esse pensamento não muda, é o que temos pra hoje. Que mais e mais escritores negros e negras consigam alcançar nossas raízes e apresentar para o mundo a visão dos nossos antepassados.

Você escreve afrofuturismo como forma de fazer política?

R: Eu escrevo porque gosto muito de escrever. Porque é o que eu mais gosto de fazer. O que mais gosto de fazer é criar novas realidades por meio do mito, da lenda, da imaginação. E é lógico que a criação está sempre impregnada dos imaginários e crenças do autor; desse modo, pode-se dizer que toda arte é também uma manifestação política. De qualquer forma, arte é arte, não é um panfleto. Embora seja. Que cada um faça o seu, ciente das consequências de suas escolhas...

Parece que o afrofuturismo está ganhando mais força no Brasil atualmente. Você vê essa efervescência como uma moda cultural ou é mais um meio de se fazer política que não é passageiro?

R: Negro não é moda. Embora, pra muitos, pareça ser... A pessoa negra vai fazer sempre o que ela quiser. Engraçado a onipresença desse verbete, "política", em tudo que a pessoa negra faz... Como se o negro fosse um bibelô político ambulante. Risos. Bom, as pessoas negras estão aí, apesar de tudo, e continuaremos fazendo o que temos de fazer; apesar dos esforços, por meio de exclusões e extermínios, jamais seremos "passageiros". Somos os primeiros e seremos os últimos.

Como você vê a literatura fatástica no Brasil hoje? Autores como Affonso Solano, Raphael Draccon, Eduardo Spohr e publicações como a Revista Trasgo ajudaram a abrir espaço para o gênero no público Brasileiro? O que mais é preciso ser feito?

R: Não tenho muito o que comentar. Cada vez menos me identifico com isso que chamam de literatura fantástica, embora, em tese, seja isso o que eu faço. Que novo mito você quer criar? Que novo sonho de conquista você quer contar para o mundo? Se ficar sempre sempre falando a mesma coisa de sempre, nos mesmos moldes, nos mesmos imaginários de sempre, então... Enfim. Cada um faz o seu. Quem quer seguir nos imaginários europeus, que siga fazendo isso...

Como é a realidade para os escritores/artistas negros no Brasil atualmente?

R: A realidade é que temos de criar nosso próprio espaço e nos lançar por outros meios. Há outras alternativas sim. Não precisamos depender dos mesmos de sempre... nem temos que implorar sempre que nos incluam. Se não fazem por nós, então nós fazemos por nós mesmos. Com o crescimento desta dita Era da Informação, com a internet se popularizando cada vez mais, cada vez menos dependemos das empresas de sempre pra nos divulgar, pra nos vender e pra atingirmos quem realmente desejamos atingir.