A VIDA DE QUEM 
ESQUECEU DE LEMBRAR

                reportagem KARINA SGARBI  fotografia DIEGO DA ROSA 

                         edição web e de vídeo RAQUEL RECKZIEGEL

Como uma doce menina e sua boneca, ela caminha. Não sabe bem onde está, tampouco aonde vai. Mas tem a certeza de que quer esmalte rosa nas unhas e uma blusa na vibrante cor vermelha. Ou, talvez, queira um vestido, porque ela também gosta desta peça. Se vê as roupas estendidas no varal, precisa ir logo recolher. E também adora ler o jornal do dia ou uma revista de celebridades, sentada na poltrona de balanço de uma sala com um relógio na parede - equipamento que anuncia o tempo que acabou de passar e aquele que está por vir, algo completamente desprezado por ela. Até porque, quem sabe, no mesmo instante em que as palavras vão sendo lidas por seus olhos, são também esquecidas em sua mente.

Apesar de ser uma mãe, avó e bisavó, Lory Maria Coelho Peixoto, 77 anos, hoje se preocupa apenas com suas bonecas. Uma delas, de nome Janaína, é com quem passa a maior parte do tempo. "Ela não é de chorar muito e gosta de ficar no colo", comenta, com um sorriso ingênuo que anuncia um dos principais efeitos trazidos pela doença de Alzheimer em sua vida. Moradora do Lar de Idosos São Vicente de Paula, em Novo Hamburgo, ela só lembra da família, da casa e até mesmo da infância em pouquíssimos e cada vez mais raros instantes de memória.

Há pelo menos cinco anos, Lory convive com o diagnóstico da doença, que pode ter começado muito antes. Os primeiros sintomas surgiram quando ela, independente, morava sozinha e dizia que lhe roubavam as coisas e que os aparelhos eletrônicos da casa não funcionavam. Depois, de forma progressiva, ela foi esquecendo de lembrar do endereço, dos amigos, dos filhos e netos. Assim, Lory virou a menina que brinca de boneca. Uma de suas filhas, Maria Odete de Paula, 55 anos, acabou se tornando a sua mãe. 

“Descobrir o Alzheimer dela foi muito traumático pra mim. Eu resisti o quanto pude, porque não queria assumir que minha mãe estava doente. Hoje, felizmente conseguimos conviver com a doença”, afirma ela, que trabalha como camareira no lar e, assim, pode ficar todos os dias mais próxima de Lory e enchê-la de beijos – algo que as duas adoram muito. Nesta segunda-feira (21), quando é celebrado o Dia Mundial da Doença de Alzheimer, as atenções se voltam à enfermidade que cada vez mais acomete a população de todo o mundo.

Sem prevenção específica, sem chance de cura ou um tratamento que permita diminuir os sintomas, ela é responsável por 60% a 70% dos casos de demência no planeta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Num cenário em que a longevidade avança e as doenças da mente crescem em proporção igualmente acelerada, a doença de Alzheimer deve ser sempre lembrada para que, quem sabe em um futuro próximo, medicina e ciência consigam encontrar uma forma eficaz de combatê-la.

Demências acompanham 
avanço da idade


Conforme o relatório de 2015 da Alzheimer's Disease International (ADI), ao longo deste ano, em todo o planeta, 9,9 milhões de novos casos de demência devem ser registrados. Isso equivale a um novo diagnóstico a cada três segundos. Considerando que o Alzheimer é a principal doença no grupo das demências, o seu avanço é preocupante. As projeções da ADI apontam que, neste ano, pelo menos 46,8 milhões de pessoas estão vivendo com demência no mundo. Em 2030, o número deve subir para 74,7 milhões de pacientes. E, em 2050, para impressionantes 131,5 milhões de pessoas.

O dado mais detalhado envolvendo o Brasil é de que, neste ano, cerca de 1,6 milhão de pessoas vivem com demência no País. Números mais aprofundados ou mesmo envolvendo o Rio Grande do Sul não estão disponíveis, pois não existe uma obrigatoriedade de notificação do diagnóstico do Alzheimer ou de outras demências. A ADI estima ainda que, nas Américas, 9,4 milhões de pessoas sofrem com doenças do gênero atualmente. 

Outro dado alarmante trazido pelo relatório da associação é que 67% do aumento das demências até 2050 deve ocorrer em países do G20, grupo do qual o Brasil faz parte. O médico geriatra João Senger ressalta que a população idosa é a que mais aumenta no mundo e, com ela, avançam as demências. "A medicina conseguiu ampliar a expectativa de vida das pessoas, mas boa parte desses anos que foram ganhos têm doenças. O que se pode fazer, atualmente, já que não temos nenhuma medicação que possa curá-lo, é tentar empurrar o aparecimento do Alzheimer para mais tarde", comenta.

ENTENDA A DOENÇA

A doença ou o mal de Alzheimer é a enfermidade neurodegenerativa mais frequente na espécie humana. Trata-se de uma doença que altera o funcionamento cognitivo (memória, linguagem, planejamento, habilidades visuais e espaciais) e muitas vezes também o comportamento (apatia, agitação, agressividade, delírios, entre outros), que limitam progressivamente a pessoa nas suas atividades da vida diária, sejam profissionais, sociais, de lazer ou mesmo domésticas e de autocuidado.

Este quadro clínico caracteriza o que, na medicina, é chamado de demência. A manifestação ocorre de forma progressiva, aumentando sua gravidade com o tempo. Entre os principais sintomas estão a perda progressiva da memória (principalmente para eventos recentes), dificuldade tanto para compreender quanto para expressar-se, de se planejar e realizar tarefas habituais, desorientação no tempo e no espaço, depressão, apatia, ansiedade, agitação, delírios e até mesmo problemas motores e de deglutição – estas últimas mais comuns nas fases avançadas da doença.

*FONTE: Academia Brasileira de Neurologia (ABN)

Genética interfere apenas em casos raros 

Ainda que tenha sido descoberta no ano de 1906 pelo psiquiatra e neuropatologista alemão Alois Alzheimer, a doença ainda não tem um tratamento capaz de impedir seu avanço. O médico neurologista e vice-coordenador do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN), Norberto Frota, esclarece que o tratamento existente hoje é apenas sintomático, melhorando apenas algumas reações provocadas pela doença, como depressão ou ansiedade. "Isso não impede que ela avance. O que temos de mais moderno ainda é feito em nível de pesquisa, em poucos locais, porque ainda não há um tratamento específico para Alzheimer", relata.

Conforme Frota, as condições genéticas interferem apenas em casos raros da doença de Alzheimer. Existem alterações que podem apenas predispor o surgimento dos sintomas, mas não se trata de uma premissa. “Um dos exemplos é a presença do éxon 4 no sangue, que pode apenas aumentar as chances de a pessoa ter a doença, o que não significa que ela irá desenvolvê-la de fato”, comenta.

As muitas faces do Alzheimer

Ainda sem cura, o Alzheimer também acumula um vasto modelo de comportamento nos pacientes diagnosticados. Alguns, como no caso de Lory, acabam voltando a ser crianças, cuidando de bonecas e brincando. Outros têm problemas em reconhecer amigos e familiares, e até mesmo as próprias roupas que vestem. Há também os que repetem a mesma palavra ou frase durante todo o dia, ou que ficam mais retraídos e até mesmo agressivos.

Conforme o médico geriatra João Senger, a doença começa, às vezes, duas décadas antes de se manifestar. "Ainda não existe um modelo específico para detectá-la, e também não há cura, apenas o tratamento para alguns de seus sintomas, como depressão ou hiperatividade. É um tema que precisa de muita pesquisa, porque é uma doença difícil, que não segue um padrão", comenta.

Amor e paciência formam a receita para ACEITAR O ESQUECIMENTO

Mesmo que os olhos fiquem fechados a maior parte do dia, a filha está lá. Se não há forças para sair da poltrona, é ela quem dá o apoio necessário. O banho, a comida e as fraldas também são sua tarefa rotineira. E junto a isso, muito amor, é claro. A troca de papéis entre mãe e filha, quando uma fica dependente e a outra precisa assumir a responsabilidade que seria da genitora, foi a forma que a moradora de Estância Velha Ivone Lurdes Feiten, 50 anos, encontrou para lidar com o Alzheimer. Há duas décadas, sua mãe, Frida Magdalena Feiten, hoje com 85 anos, recebeu o diagnóstico. Desde então, a filha a viu esquecer o nome dos amigos, o bairro em que mora, a família e, mais recentemente, até de se alimentar.

Mas o estágio avançado da doença, que exige cuidados que atendam a todas as necessidades, não impede que a alegria reine na casa, repleta de fé. No começo, Frida morava com outra filha, de um total de oito descendentes que gerou - somado ao número, há ainda 19 netos e dez bisnetos. Mas, depois de um tempo, quando surgiu a alternativa de colocá-la em um lar, Ivone decidiu que cuidaria da mãe. Levou a família para a casa dela, teve a terceira filha. Tanto as suas três meninas quanto o marido lhe apoiam na tarefa de cuidar da mãe. No começo, ela chegou a ter depressão, dada a dificuldade em lidar com a doença. Mas depois, com muita fé, como ela mesma gosta de destacar, conseguiu se recuperar. "Houve vários momentos em que ela não me reconhecia. Mas daí a gente dava risada, porque não adianta ficar triste. Ela pode não saber mais nada de mim, mas no meu coração, ela é a minha mãe", afirma.

E assim como a filha sente o carinho que a doença não pode apagar, ela também tem certeza de que Frida comparte o mesmo amor. “Quando eu tenho que viajar ou fico longe por dias, volto e ela chora, porque sente a minha falta”, relata. Gradativamente, o Alzheimer avançou a ponto de tirar o raciocínio, a fala e a maior parte dos movimentos dela. Hoje, mal abre os olhos. “É bem estressante cuidar de uma pessoa assim, porque é como uma criança. Só que em vez de evoluir, ela só vai regredindo, o que nos frustra no começo. Mas é só uma questão de entender e se adaptar”, destaca Ivone.

Sentimentos permanecem

O Alzheimer pode levar a consciência, o pensamento e o raciocínio, mas segundo Ivone, não tira os sentimentos. Prova disso foi um fato ocorrido em janeiro deste ano, quando Frida completou seu 85º aniversário. Sem avisá-la, a filha chamou todos os irmãos para um almoço. Reuniu também os netos e bisnetos em torno da mesa farta. Mas, antes de servir a refeição, foi até o quarto e trouxe a mãe, que caminhava com dificuldade. Ao ficar em frente a toda a família, lhe disse que aquele era seu aniversário, que todos estavam ali para comemorar com ela e cantar parabéns. "Quem mais chorou foi ela, porque se emocionou com aquilo. Eu acho que é algo divino", ressalta.

A família também 
precisa de cuidados

Com o comprometimento cognitivo resultante do avanço do Alzheimer, o paciente diagnosticado com a doença precisa de cada vez mais cuidados. Se, no início, apenas a memória recente é afetada, com o tempo até mesmo as necessidades básicas de um ser humano deixam de ser atendidas. Isso afeta profundamente a vida dele, mas também exige muito de sua família e seus cuidadores. A psicóloga Daniela Henkel Blauth destaca que a terapia é recomendada para garantir boas condições mentais àqueles que convivem com a doença em casa. "Quando os familiares ou o cuidador ficam estressados, ocorre uma baixa na qualidade no auxílio ao paciente, baixo nível de tolerância, irritabilidade, agitação e o ambiente acaba ficando nervoso, deixando o paciente alterado e desorganizado", comenta.

A casa onde há um paciente com a enfermidade sofre muitas alterações em seu ambiente. Para conseguir lidar com isso, a psicóloga recomenda que os familiares e cuidadores busquem informações, o que permitirá compreender o processo e o estágio da doença. “Existem vários sentimentos que afetam os familiares, desde a negação, raiva, culpa, medo, tristeza, até a mudança da identidade daquele doente de Alzheimer na sua própria família”, afirma. Ela destaca que no início a situação é mais delicada, mas no decorrer do tempo, quando há auxílio para que haja este entendimento sobre a doença e seus efeitos, todos conseguem se adequar melhor à nova realidade. “O doente de Alzheimer poderá ter uma melhor qualidade de vida mediante todas as dificuldades que terá na evolução da doença”, explica.

A negação à doença, algo comum de acontecer logo após o diagnóstico, precisa ser evitada. “É muito mais fácil negar a situação para muitas vezes poder suportá-la. Mas o ideal é encarar o problema de frente, partilhar o sofrimento com outras pessoas e assim as questões começam a amenizar”, relata. Num primeiro momento, além de buscar esta aceitação, é recomendado também procurar ajuda de profissionais que possam colaborar com o entendimento do Alzheimer. Desde geriatras, neurologistas, psicólogos e psiquiatras, ou mesmo grupos de apoio como os oferecidos pela Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz). “Neste espaço, é possível trocar experiências e suas angústias”, finaliza.

DADOS DA DOENÇA