Filhos de outra terra

As histórias de migração de um português no Brasil e uma brasileira em Portugal

"Eu bem queria que ele ficasse, mas ele tinha de ir trabalhar para o Brasil. Se ele ficasse... bem que ia para a guerra!"

3 de dezembro de 1962 

As malas estavam prontas para seguir viagem. Na bagagem, Joaquim Moreira da Costa levava mais do que apenas as suas roupas. As recordações, só por si, chegavam para encher a pequena mala castanha. Os sons da sua aldeia davam para gravar mais de cinco horas de discos de vinil. Costa, mais conhecido por Costinha, devido à sua altura, agarrou em tudo o que a sua terra lhe deu e partiu para o Brasil.

Embarcou, com o coração aflito, num navio que rumava até ao outro lado do oceano. Foram nove dias a apreciar as águas do mar. A única e tão desejada paragem deu-se apenas em Las Palmas, capital de Gran Canaria, uma das ilhas espanholas no noroeste de África. 

Enquanto olhava o mar, este jovem recordava a situação do país que deixara para trás. Os jovens, os que tinham dinheiro, manifestavam nas portas da Universidade de Lisboa há uns dias atrás. 

"A minha liberdade não é igual à tua. Separa-nos um muro, que nem eu nem tu construímos. A nós, rapazes, de viver do lado de cá, onde temos uma ordem social que em relação a vós favorece. Para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietante da sombra e da repressão mental. (…) Beijas-me e sofres. Dizes, não o devia ter feito, porque julgas que o deverias ter pensado". 

Manifesto contra o moralismo serôdio do Salazarismo, de 1962, escrito pelo  estudante Marinha de Campos, publicado no Via Latina, semanário da Associação Académica de Coimbra.

Costinha recordava este texto que circulou por todo o lado naquela época, mas não compreendia bem o desânimo destes jovens. A realidade dele era outra. Mais dura, para si. A tropa obrigatória, a guerra da época, fez com que este jovem, que há poucos anos faleceu já de velhice, viajasse até Niterói, no Rio de Janeiro, para trabalhar.


Estas histórias são as lembranças de Maria La Salete Nunes da Silva. Esposa que, após três meses da viagem, casou por morrer de amores pelo noivo. Um amor de infância que permaneceu nas suas vida e que nem a tropa obrigatória, que declinou a partida de Costinha para o Brasil aos 14 anos, foi capaz de os separar. Mas a distância, não separou o amor que em 1967 revolucionou a vida de ambos: casaram-se.

Maria sabia que o seu lugar era ao lado do homem que diz ser eterno, "desde o tempo do liceu". A alegria que permaneceu em Costinha desde criança, foi a mesma que os manteve unidos durante tantos anos.

"Os nossos amigos faziam bailes só para a gente dançar um com o outro. Foi num desses bailes. Pediu-me em casamento e eu lá aceitei”, conta com as lágrimas nos olhos.

Largaram tudo e, desta vez, foram ambos para o Brasil fazer vida. Costinha trabalhava no comércio, nas lojas do senhor Noronha, natural de Castelo de Paiva, à semelhança de Joaquim Costinha. Foi a partir destas condições que construíram as suas vidas. Mas ele sentia falta de tudo o que tinha em Portugal. Só a mulher e os grandes amigos (que fez por aquelas ruas inundadas de lojas comerciais) o faziam sentir-se em casa.

"Aquele regresso foi muito emocionante. Não era só porque ia para o Brasil, mas no navio chegou uma mulher que teve um bebé no barco. Ela vinha noutra embarcação e a nossa teve de parar, mandar daqueles barquinhos pequeninos, para salvar a mulher brasileira. Já tinha lido uma história assim e não é que via acontecer à minha frente? Poxa"!

Músico, com um amor imenso à Banda Marcial de Bairros, tocava por estas terras portuguesas aquele que dizia ser "o coração da música, é o bombo que manda, sem bombo a banda vai abaixo", recorda a sua esposa com uma gargalhada espontânea.

Foi então que Costinha decidiu levar os seus conhecimentos musicais até à Banda de Niterói. 

"Ele corria tudo com o bombo, eram arruados por todas as terras. Mas hoje já não é assim. O perigo está em todo o lado, as bandas já não tocam nas ruas por medo que venha um grupo e roube tudo. Pior, que venha uma bala perdida".

Suspira. "Hoje foi um dia de mexer em memórias, sinto tanto a sua falta". Mas as memórias continuaram por longas horas.

A vida conjunta no Brasil decorreu por oito anos. Intensos. O amor de ambos deu dois rebentos que ambos colheram como que da sua própria vida se tratasse: Cláudio e Claudete. E foi quando Maria La Salete engravidou da sua menina que a data para regressar a Portugal chegou. O motivo? O estado de saúde da sua mãe. Os valores da família permaneciam os mesmos após oito anos longe.

Este regresso ficou pautado pela miséria. Viveu numa pequena casa "que nem casa de banho tinha, era uma retrete".  Por dois anos esta mulher, agora marcada no rosto pelas amarguras da vida, teve de criar dois filhos sozinha, já que o trabalho obrigou Costinha ficar em Niterói. Ao fim desses dois anos, em 1975, as suas vidas voltaram, agora juntos e "mais fortes que nunca".

Não foi a violência que os fez regressar, mas sim as saudades, o sentimento de pertença que Costinha e Maria sentiam face a Castelo de Paiva. Mas os relatam de violência e distúrbios sociais já existiam naquela época.


Em Niterói (Rio de Janeiro) o comércio era o centro da atividade económica em 1967, algo que mudou com o tempo. Aliás, foi no comércio que Costinha trabalhou durante muito tempo, uma vez que os portugueses construíam o seu monopólio comercial no Brasil com os produtos portugueses. Agora, Maria volta ao Brasil regularmente para visitar a família e os amigos, "os que ainda estão vivos". Fala que, na sua última visita ao Brasil, não teve medo de andar nas ruas, "mas porque já se sabe por onde se pode andar.

Agora estamos em 2018...

O século já não é mais o mesmo, tampouco a realidade de ambos os países. Diria Gilberto Gil, em sua famosa composição, que "o Rio de Janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo", mas continua sendo lindo para quem?

Fernanda Pegoraro aparece pelos corredores da Universidade do Minho em Braga, Portugal às 19h27. Com um ar cansado e, como se fosse possível, com um belo sorriso no rosto mesmo após um teste de Geopolítica, ela faz questão de falar um pouco de si e de sua experiência migratória. Com saudades ela lembra do seu país. Os dias quentes de um verão que não tem fim, cheios de música e alegria na Lapa, a companhia dos irmãos e primos que ficaram para trás, as cervejas após as aulas com os amigos na Mureta da Urca e a boa companhia do namorado.


Aos 25 anos sua vida mudou e está a mudar a cada dia que passa. É o que fala. Um projecto compartilhado com duas amigas da licenciatura tornou-se algo concreto: uma vaga no mestrado em Relações Internacionais. E o que a teria motivado a dar essa reviravolta em sua vida particular?

Contextualização factual

A insegurança no Brasil por todos os lados: crise política, económica e violência urbana

Ao final de 2016, Fernanda concluiu a licenciatura em História na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Mesmo tendo realizado um curso digno, sempre com boas notas e inúmeras oportunidades de desenvolvimento de pesquisas, eis que chegou o momento de dar o passo seguinte – ingresso no mercado de trabalho como professora. Tal parecia cada vez mais distante. O problema não era a Fernanda. O problema era, e continua a ser, a atual situação de instabilidade brasileira.

A conjuntura brasileira tem vindo a mudar consideravelmente nos últimos anos. Em 2008 havia uma crise internacional do mercado. O Brasil não sentia os efeitos da mesma, devido às políticas económicas de estímulo de consumo interno e do grande aumento no preço das commodities (o Brasil é um grande exportador de alguns produtos primários, nomeadamente a soja e minério de ferro). Nos últimos anos esse quadro sofreu grandes alterações.

Em março de 2014, a Polícia Federal Brasileira deflagrou a Operação Lava Jato, que tinha por objetivo investigar um mega esquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras (empresa estatal de energia) grandes empreiteiras no país e sistemas de desvio de dinheiro envolvendo dezenas de políticos. Essa situação impactou boa parte do resultado de crise.

Internamente, as políticas de incentivo ao consumo continuaram a existir, mas um desequilíbrio nas contas públicas e denúncias constantes de corrupção prejudicaram a credibilidade do país que viu os seus investimentos estrangeiros caírem drasticamente. Com um menor ritmo, em todos os setores da economia, a arrecadação de impostos também foi reduzida e, com isso, o Produto Interno Bruto sofre, até os dias atuais, um emagrecimento constante.

Estes fatores econômicos e políticos apontados foram diretamente sentidos pela população brasileira que viu seu poder de compra drasticamente reduzido. Protestos e manifestações acerca do governo Dilma Rousseff começaram a aumentar a partir de 2015. Em outubro do mesmo ano, o Tribunal de Contas da União recomendou a rejeição das contas de 2014, devido às "pedaladas fiscais". Esta decisão foi então utilizada pela crescente oposição parlamentar para fundamentar um pedido, bem-sucedido, de impeachment da presidente.

Estes fatores económicos e políticos apontados foram diretamente sentidos pela população brasileira que viu seu poder de compra drasticamente reduzido. Protestos e manifestações acerca do governo Dilma Rousseff começaram a aumentar a partir de 2015. Em outubro do mesmo ano, o Tribunal de Contas da União recomendou a rejeição das contas de 2014, devido às "pedaladas fiscais". Esta decisão foi então utilizada pela crescente oposição parlamentar para fundamentar um pedido, bem-sucedido, de impeachment da presidente.

Fábiano de Abreu, filósofo brasileiro que nos últimos anos tem-se dedicado ao estudo do fenómeno brasileiro, afirma que "o Brasil é um país a ser estudado". 

 "Você sobe e está em uma mescla de África com franceses e holandeses, no meio uma mescla de raças, no sul, alemãs, italianos, poloneses. Muitos de família nazista inclusive. São culturas misturadas de todos os tipos que não deu uma única. É um país bom para ganhar dinheiro. Há uma cultura capitalista ali. As pessoas gostam de gastar, gostam de coisas novas. Confiam uma nas outras até que prove o contrário, experimentam o novo, estão abertas as novidades e são criativos. A tecnologia não perde para os Estados Unidos, tudo entra lá de alguma maneira. Existe uma parcela da população que culpam os portugueses por ser um país com tantos problemas. Ao mesmo tempo, existem muitos portugueses para defender-se e que são responsáveis por parcela da economia do país. São de grande maioria pessoas bem sucedidas, pessoas de sucesso. Um turista português no Brasil é facilmente confundido com um habitante português que lá está a viver a muito tempo. É normal".

Era janeiro de 2017 quando Fernanda recebia em mãos, emocionada, o seu diploma de formatura. Ao longo de cinco anos colecionou vivências e já não era mais a mesma pessoa. Aprendera a problematizar as mais diversas situações, a não aceitar que as coisas são como são e que o mundo é como é: "uma caixinha de surpresas". Se naquela data, repleta de sentimento de vitória, Fernanda estava em extasie , os dias que se seguiriam não seriam da mesma forma.

 A incapacidade de ingressar no mercado de trabalho, no auge de uma crise económica e política, era algo que a deixava constantemente preocupada. Um dia uma amiga da licenciatura convidou-a para tomar um café e conversar um pouco. As duas encontraram-se no lugar de sempre: a Mureta da Urca. A partir daquele dia a vida de ambas mudou e a esperança voltou a surgir.

Foi naquele dia, naquele fatídico local, que começaram os planos em fazer o mestrado fora do país. A Urca, um bairro permeado de significado e de memórias da universidade estava, definitivamente, a marcar o fim de um ciclo e início de outro completamente diferente. E se a esperança de que sua situação pudesse vir a mudar era frágil, a partir de então revigorou-se.

 Mas, porque não fazer o mestrado no próprio Rio de Janeiro?

Se o país estava em crise, também estava o estado do Rio de Janeiro. Ao longo dos anos, os investimentos em três áreas - segurança pública, saúde e educação - foram reduzidos. É interessante explicar que foram estas reduções de investimentos no estado que transformaram o lugar num verdadeiro caos. De acordo com o discurso entristecido de Fernanda, as previsões não apontam uma melhoria. 

Em situação de contraste estava a realidade portuguesa. Um país que se recupera economicamente, possui diversos acordos bilaterais com o Brasil e um grande investimento na área da pesquisa científica e educação. 

Portugal, um país seguro e de braços abertos

Era cedo e o dia estava chuvoso. Chegava Fernanda a cidade do Porto, cansada e com os olhos repletos de lágrimas. Sua vida cabia em duas malas e um coração de saudades. Os familiares, a um oceano de distância, faziam falta. No caminho até o hotel que ficaria em Braga surgiram incertezas e questionamentos começaram a surgir. Esta aventura valia a pena? E a solução apareceu nos encantadores versos de, por curiosidade do destino, Fernando Pessoa: "Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena / Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor". Era Fernando a aconselhar Fernanda, como se houvesse antecipado toda esta situação.

A dor inicial do afastamento foi dramatizada pela falta de um lugar para ficar. A pergunta tornava-se cada vez mais frequente. E então, com um fator importante a ajudar, isto é, o tempo, os problemas iniciais foram-se dissipando. Braga mostrou ser uma cidade acolhedora e principalmente no meio académico, Fernanda sentiu-se abraçada.

De facto, concorda Fernanda, o Rio de Janeiro continua lindo, mas a vida que começou no dia 06 de outubro de 2017 é magnífica e ser filha de outra terra é algo que quer para si cada vez mais. As preocupações que chegaram consigo já não fazem mais parte do seu dia a dia. 



À sua semelhança, Maria de La Salete, não se revê, agora sem o seu tão amado Costinha, a voltar para o Rio de Janeiro. Questiona agarrada ao seu álbum de fotografias: "A menina nunca foi ao Rio de Janeiro? Então vá, ganhe dinheiro com o jornalismo e vá, porque aquilo é lindo e nenhuma violência apaga aquelas magníficas paisagens. Suba até ao Cristo e olhe aquela magnífica paisagem".

O ato de emigrar envolve motivações diferentes que variam conforme o tempo e as necessidades pessoais. Costinha não é Fernanda. Fernanda não é Costinha. As situações de ambos os países mudaram ao longo de tantos anos. Se Costinha foi ao Brasil para fugir da obrigação do serviço militar, Fernanda foi para Portugal com a intenção de fugir da crise económica e política brasileira. 

O que não muda, em ambas as histórias, é o ato de sair da zona de conforto em busca de algo melhor. As guerras das terras que os viram nascer, levaram duas pessoas a mudares de vida, a serem filhos de outra terra. É difícil, confessam, mas contraditoriamente, também é fácil. Basta força para superar o que não está bom. "Temos que acreditar que estamos cá ou lá para uma vida melhor, é agarrar o amor e seguir em frente, e deixar que os sonhos nos comandem", afirma Maria La Salete, palavras com as quais Fernanda concorda plenamente.

"Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada / À parte isso / Tenho em mim / Todos os sonhos do mundo" (Fernando Pessoa)

São esses sonhos e a vontade de viver que tornam digna a experiência de ser filho de outra terra.