No dia 6 de novembro de 2015 a lama de rejeitos da Barragem de Fundão chegou a Barra Longa, a 60km de Mariana. Plantações, animais, casas e histórias foram devastadas conforme o barro avançava pelo município. Sete meses depois, ainda há lama para ser retirada, casas para serem reconstruídas e espaços públicos em recuperação.
O percurso da lama pelo município alterou a vida dos moradores. As marcas internas causadas por um trauma não são quantificadas. A saúde mental dos barralonguenses não está presente em dossiês, nem em estatísticas oficiais.
Paula Locher

“Não tenho vontade nenhuma de sair de casa. Parece que fico vigiando alguma coisa. Tenho a sensação de que não posso sair daqui.” A vigília de Elaine Etrusco, 61 anos, tem início todas as noites. Desde que o quintal foi invadido pela lama da Barragem de Fundão, na madrugada do dia 6 de novembro de 2015, as horas de sono da professora foram alternadas para o dia. Elaine passa as madrugadas em claro e se descobriu em permanente estado de atenção, com o sentimento frequente “de que algo ainda está por vir”.

A casa passou por gerações da família Etrusco, guardando memórias nos detalhes de cada cômodo e nas fotografias do passado. O quintal acolhia um pomar, uma horta e a criação de pequenos animais. O terreno termina no Rio do Carmo, afluente do Rio Doce, que teve a correnteza tingida de marrom após o rompimento da barragem. Com a corrente d'água veio a lama e, com ela, o medo de perder as recordações da família. Os objetos ainda encaixotados são reflexo da espera atenta da professora. Posso perdê-los a qualquer hora. Hoje, Elaine luta para recuperar o pomar, os pés de feijão, o sono e a esperança no futuro.

Paula Locher

De acordo com a Samarco, um Mapa de Ação “específico para as demandas da localidade”, foi desenvolvido com foco em projetos humanitários em Barra Longa. Dentre as ações estão a entrega de 67 casas e 26 estabelecimentos comerciais, a reforma, em andamento, de outros 33 imóveis, a distribuição de 249 cartões para auxílio financeiro, a entrega de 3 mil cestas básicas e o fornecimento de 9 mil litros de material de limpeza. Moradores reclamam que o diálogo com a empresa não acontece de forma humanizada. “Eles falam em obra, eu falo em sentimentos. Eles falam em cerca, eu falo nos meus pés de feijão. Toda hora eles vêm me perguntar o que eu quero plantar no meu quintal. Ninguém nunca me perguntou o que quero plantar no meu coração”, afirma Elaine.

Odete Cassiano, 58, se mudou para Barra Longa há oito anos. Sempre viveu na zona rural, onde trabalhava com o cultivo de hortas e árvores frutíferas. Ela escolheu um terreno à beira do Rio do Carmo e planejou plantar, nos fundos da casa, todos os vegetais e frutas que possuía no antigo quintal. Além da aposentada rural, na residência viviam seus pais, ambos com 87 anos.

A lama que atingiu Barra Longa destruiu o pomar e ocupou todo o porão de Odete. Após o trauma, ela teve o quadro de depressão agravado e viveu os meses seguintes com auxílio psicológico e medicamentos. A psicóloga e especialista em Saúde Mental Pós-Trauma Lilian Garate comenta que, assim como a Barragem de Fundão, as histórias dos atingidos foram rompidas. “O desastre rompe o domínio do indivíduo com a própria vida.”

Paula Locher

Odete enfrentou momentos difíceis, tentando cuidar de si e dos pais em meio à destruição. Parte da identidade da moradora foi perdida quando a lama desmanchou toda a plantação. Foram meses turbulentos que culminaram na tentativa de dar fim à própria vida. O apoio da família foi essencial para Odete superar o ponto mais grave da depressão. Se meu filho não tivesse ficado três meses comigo, eu teria feito alguma coisa, não estaria aqui para contar história. Ela ainda lida com os reflexos do trauma e recebe tratamento de profissionais da saúde mental contratados pela Samarco. Entretanto, Odete reclama do abandono das autoridades e da mineradora frente ao caos instalado em Barra Longa. "Somos atingidos pela lama, atingidos pelo governo. Nossos direitos foram todos violados."

As marcas invisíveis, após a perda de objetos, certezas e sentimentos, são compartilhadas por diversos moradores, que resistem em manter identidades em uma cidade transformada em canteiro de obras. Desde novembro de 2015, a Samarco contratou cerca de 500 funcionários para remover a lama do município. Com esse acréscimo populacional, os moradores afirmam que a tranquilidade cotidiana foi substituída pelo ritmo de trabalho da mineradora.

Além das obras para reconstrução do município, consta no Mapa de Ações a contratação de profissionais para atendimento à saúde física e mental dos atingidos. Procurada pelo LAMPIÃO para especificar as ações, a mineradora informou que "desenvolveu um plano prevendo todas as ações necessárias nas cidades de Mariana e Barra Longa". De acordo com a empresa, foram contratados 27 profissionais especializados em saúde mental. Somente Mariana recebeu 24 desses profissionais, sendo um psiquiatra, 11 psicólogos, três assistentes sociais, sete terapeutas ocupacionais e dois arteterapeutas. Para Barra Longa, a mineradora destinou apenas um psiquiatra e dois psicólogos.

Descaso

Paula Locher

Maria Aparecida, 38, é conhecida em Barra Longa como Cidinha. Cabeleireira há 14 anos, não mora nem trabalha na beira do Rio do Carmo, porém convive com os impactos da lama na cidade. Ela criou os quatro filhos e construiu a casa com a renda do salão. Hoje, tem dificuldade para dormir. Com o rompimento da barragem, o número de clientes no estabelecimento diminuiu cerca de 30% e as dívidas surgiram. A cabeleireira atribui a queda na clientela à falta de eventos sociais e ao fechamento de espaços coletivos, devastados pela lama. Agora ganhando mensalmente cerca de R$ 1.000, Cidinha se preocupa em manter o bom nome. A moradora não recebe o cartão de auxílio financeiro da Samarco. Segundo ela, a empresa não a considera diretamente atingida.

Manoel Trindade, 60, é artesão e teve a produção afetada pelo estresse. "Tenho um ateliê no fundo de casa. Com essa barulheira de caminhão, máquinas e de operário, não consigo produzir, minha mente não tem sossego.” O morador afirma que a empresa não ofereceu apoio psicológico domiciliar, como estava previsto no Plano de Ação. Manoel conta que ligou para a central de atendimento da Samarco e nenhum profissional da saúde mental foi atendê-lo em casa. Na segunda ligação, o morador foi informado que teria que ir à policlínica para agendar um atendimento em consultório. “É obrigação da Samarco trazer um psicólogo na minha casa pra eu conversar.”

O estresse e as mudanças de humor e do sono, compartilhados por Elaine, Cidinha, Odete e Manoel, são os sinais internos da passagem da lama pela cidade. De acordo com a psicóloga Lilian Garate, são sintomas de um trauma alterações no sono, no apetite, sentimento permanente de ameaça, estresse agudo, palpitação e falta de ar. “Se eles persistirem após quatro meses do evento traumático, já podem ser considerados um indício da Síndrome do Stress Pós-Traumático.”

Paula Locher

"Nenhuma autoridade nos avisou sobre o risco da lama. Falaram que não chegaria nem na pracinha, por isso não saímos de casa." Íris Lana, 67, só conseguiu deixar a casa no dia 7 de novembro, quando três moradores a buscaram de canoa. A bordadeira mora às margens do Rio do Carmo. No local, a lama avançou pelo quintal, destruiu plantações, atravessou a casa e chegou à altura das janelas. Todos os objetos foram perdidos. Porém para Íris, o valor material tem menor importância do que as memórias. "Foi muito triste sair da minha casa e deixar tudo pra trás, mas a perda material não é tanta. Tinha muitas fotos do meu filho que morreu, do meu pai, e objetos de família.”

Íris foi, por muitos anos, presidente da Associação de Bordadeiras de Barra Longa e enxerga a arte de tecer como terapia, que ajuda a enfrentar os traumas. A bordadeira convive com a Doença de Parkinson e, após o rompimento de Fundão, o quadro piorou. “Não estava andando nem falando, piorei muito. Todo mundo ficou preocupado.”

O quadro de Maria Geralda Bento, 78, também piorou após o rompimento. A lama invadiu sua propriedade em Gesteira, distrito de Barra Longa, onde os 35 membros da família se reuniam aos fins de semana. Mãe, avó e bisavó, Geralda sente o afastamento familiar, já que a casa ampla foi substituída por um apartamento de dois quartos, alugado pela Samarco. Além disso, os problemas cardíacos e a osteoporose se agravaram. Os remédios que utiliza não são pagos pela empresa, que exige provas para considerar a piora de quadro uma consequência da tragédia. A dona de casa passou a ser acompanhada por um ortopedista e um fisioterapeuta, ambos em Ponte Nova.

A psicóloga Lilian Garate pondera que históricos clínicos podem se agravar em consequência da experiência traumática. Além disso, se não houver acompanhamento, o trauma pode aumentar a intensidade das marcas internas de um indivíduo.

Paula Locher

De acordo com a Secretaria de Saúde de Barra Longa, as consultas com psicólogos e psiquiatras acontecem na policlínica da cidade. A psicóloga Laura Lana atende diariamente no centro de saúde. Desde novembro, a profissional já realizou mais de 500 consultas e os transtornos mentais detectados na população variam entre insônia, ansiedade, depressão, sinais de estresse pós-traumático e aumento do alcoolismo.

Segundo a psicóloga, a insônia foi a maior queixa dos moradores. Muitos ficavam com medo de dormir à noite, já que a lama atingiu a localidade durante a madrugada. Posteriormente, os quadros avançaram para a ansiedade, que atualmente "parece estar aumentando. As pessoas querem ir logo para as suas casas e ver o quintal reconstruído. Querem retomar o antigo ritmo de vida”, afirma Laura. Casos de depressão também são identificados.

Já o psiquiatra contratado pela Samarco Leonardo Magalhães afirma que somente identificou quadros temporários de estresse pós-traumático. O profissional reitera que desenvolveu, junto com a psicóloga do centro de saúde, um plano de acompanhamento direcionado aos atingidos pela lama. Os atendimentos psiquiátricos acontecem uma vez por semana, na policlínica da cidade. De acordo com o profissional, a carga horária destinada para serviços psiquiátricos na policlínica de Barra Longa é adequada para a demandados atingidos e do restante dos moradores. “Trabalho 40 horas mensais, 10 horas semanais. Ofereço um tratamento justo e necessário para a população.”

A psicóloga Lilian Garate aponta que “o emponderamento dos atingidos é fundamental para que eles se sintam novamente donos da própria vida". Odete Cassiano participa do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), desde dezembro de 2015, e credita à organização parte de sua recuperação. "Tomei conhecimento dos meus direitos.” O movimento tem atuado na região desde o rompimento de Fundão para esclarecer os moradores sobre os impactos sociais e ambientais, além de impulsionar a força da coletividade. O coordenador do MAB Thiago Alves atua junto à comunidade de Barra Longa, e afirma que a dimensão da destruição da lama na cidade invadiu esferas da sociedade e do bem estar mental. “A lama transbordou a vida social.”

Procurada pelo LAMPIÃO, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais informa que "não há nenhuma evidência até o momento de agravos (psicossociais) que possam ser relacionados ao rompimento da barragem, bem como não há relatos de suicídios conectados ao evento". Em nota, a Samarco afirma desconhecer dados sobre suicídios, assim como tentativas. "Nenhum estudo foi apresentado à empresa pelos órgãos ou entidades da área da saúde." Até o fechamento desta edição, a Secretaria de Saúde de Barra Longa não se manifestou sobre o andamento dos atendimentos psicológicos e psiquiátricos, e não informou a respeito de projetos voltados para a saúde mental da população.

Paula Locher

João Pedro, 6, não sabia o que era uma “varragem”. Enquanto a mãe, Paula, zarpava na moto “Berenice” pelas ruas de Bento Rodrigues, avisando aos moradores que a Barragem de Fundão rompera, o menino corria ao lado da avó, Maria Lúcia, para uma região inclinada. As perninhas não davam conta da velocidade e a cabecinha curiosa tentava entender o que se passava naquela situação incompreensível.

Após sete meses, o estrondo da força da lama ainda está presente nos dias de João. Ao ouvir barulho de chuva, helicóptero ou trator, o menino repete “barragem de novo, não!”. A mãe conta que João precisou de acompanhamento psicológico para enfrentar o medo de ruídos que se assemelham ao rompimento da barragem.

Paula afirma que ao longo do auxílio psicológico, o filho foi superando o medo de ruídos, mas mesmo assim não consegue dormir sozinho. “Em Bento ele dormia no mesmo quarto que eu, mas na cama dele”, relembra. Além disso, a família tem observado que João apresenta sintomas de ansiedade.

João é o único da família que foi acompanhado por psicólogo. A avó, Maria Lúcia Alves, concentra as forças na fé e agradece pela família estar bem. Por ter vivido em Bento desde criança, a dona de casa sente necessidade de reviver na alimentação as raízes e não deixa faltar carne de panela, feijão, couve e angu. Enquanto trabalha na cozinha, deixa a televisão ligada no canal católico Canção Nova e reafirma que sua força vem dos céus.

Mesmo vivendo em Mariana desde janeiro, Maria Lúcia e Paula não se familiarizaram com a cidade. Consideram-se pertencentes a Bento e saem pouco de casa. “Quando saio vejo tanta gente, dá até agonia. Nós estamos em terras estrangeiras”, diz a avó. A psicóloga Débora Rosa que atua no setor de saúde mental de Mariana informa que os impactos psicossociais nos ex-moradores de Bento estão presentes na dificuldade de adaptação do meio rural para o urbano, refletida principalmente pelo distanciamento geográfico entre os vizinhos, na perda da memória afetiva com o local de origem e na mudança no modo de viver.

A psicóloga, que tem acompanhado os atingidos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo realiza, junto a outros profissionais da área, ações nos bairro de Mariana e faz visitas domiciliares. Segundo o Coordenador da Rede de Atenção Psicossocial da cidade, Sérgio Rossi, o número de profissionais que estão atuando após o rompimento de Fundão subiu de 29 para 54. Já a média de atendimentos mensais cresceu 20% desde novembro.

O desejo da mãe e da avó é morar novamente na comunidade de Bento Rodrigues, que será construída no terreno de Lavoura. Lúcia não se diz ansiosa, mas que acha fundamental voltar às suas raízes. “Sabemos que lá nos sentiremos estranhos no início, mas com o tempo será nosso lugar”.

"A lama transbordou a vida social de uma maneira absurda"    Thiago Alves
Paula Locher

Diagramação da versão impressa: Gabriela Vilhena

CRÉDITOS

Texto: Luísa Campos e Mariana Viana
Fotos: Paula Locher
Design: Felipe Nogueira
Audiovisual: Thatiana Freitas

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