Moradias à margem

Com relevo irregular e falta de planejamento, Ouro Preto enfrenta problemas de habitação

“Sonho em ter minha casinha. Em deixar algo para meus filhos.” 

Frase e sonho são partilhados por Gláucia e Carlos, Rosângela e Eva, que padecem da mesma espera. Retiradas de áreas de risco de Ouro Preto, tiveram as residências demolidas pela prefeitura. Aprenderam a temer a força da natureza, têm medo de dormir e não acordar quando as chuvas duram dias. Hoje, fora das áreas vulneráveis, convivem com o descaso de promessas que nunca se concretizam e aguardam há mais de 10 anos a construção das casas próprias.

Gláucia Aparecida Inácia Souza, 32, é casada com Carlos Rodrigues Coelho, 42, com quem tem sete filhos e espera, há mais de 11 anos, a nova propriedade. “Eu tinha minha casa, era em área de risco, mas era minha. Me tiraram de lá. Eu quero o que é meu”, exige Gláucia. A casa que ficava no bairro Piedade, divisa com o Taquaral, foi demolida quando foram retirados em 2004. Além do casal, outras 28 famílias foram retiradas do Alto do Taquaral em 2005. A família mora atualmente no Alto da Cruz em uma casa alugada e recebe o Aluguel Social desde 2006. Segundo Carlos, o Secretário de Desenvolvimento Social, Roberto Leandro, informou que até o dia 07 de março, que sairia a casa no Vila Alegre, em Cachoeira do Campo. “Não acredito em papel. Só acredito que a casa sai, quando eu estiver lá com minhas esposa e filhos. Mas não vou de qualquer jeito. A casa apresenta muitos problemas na estrutura. Ta vazando água, a porta da frente é porta de colocar em quarto. Eles não estão me dando nada de graça, então tem que ser direito”, questiona Carlos.

Além de Gláucia, 162 famílias vivem com o Aluguel Social, parte do Programa Municipal Habitacional Um Teto é Tudo. Só podem ser beneficiados moradores removidos e sem condições e retornar ao local; residentes de área de risco ou alto grau de insalubridade; e pessoas em situação de vulnerabilidade social ou extrema pobreza. A verificação das condições dos moradores é feita por técnicos sociais e Defesa Civil. Ao serem enquadradas, as famílias são realocadas em casas alugadas, renovadas a cada seis meses. Rosângela*, 30, vive com o marido e os três filhos em casas alugadas desde que foram retirados em 2005 da Barra, no Beco do Manxica. Ela recebeu o auxílio por cinco anos, depois foi para a capital e há dois anos retornou ao programa. “Fiquei em Belo Horizonte quatro anos. Voltei pra cá, comprei um lote [no Mangabeiras, no Alto da Cruz] e construí outra casa. Eles me tiraram de novo. Perdi duas casas e até hoje não recebi a minha”, lamenta. Hoje, Rosângela vive de aluguel no Santa Cruz, esperando a indenização prometida ou a construção da casa. “Quando entramos no aluguel, eles falaram para não nos preocuparmos, que teríamos cesta básica e fraldas. Hoje, você vai pedir uma cesta básica é uma guerra. É de dois em dois meses. Quem vive com dois pacotes de arroz? Quando a gente vai lá é humilhado. Não peço mais, não sou lixo.” Questionado sobre cesta básica e outros benefícios, o Secretário Municipal de Desenvolvimento Social, Roberto Leandro, afirma que o programa só é responsável pelo pagamento do aluguel.

Eva Ferreira, 44, vive com oito dos 11 filhos no Santa Cruz, em uma casa alugada pela prefeitura há 10 anos. “Morava no Taquaral com os meninos. Falaram que minha casa era ruim e que eu tinha que sair ou levariam meus filhos. Ia morar só três meses de aluguel enquanto eles reformavam minha casa. Nunca voltei. Meu barraco foi jogado no chão. Minha casa era em área de risco, dissera, mas as outras pessoas que continuam lá, morando que nem eu morava, não foram tiradas”, lembra. Eva aguarda a casa prometida enquanto cria sozinha os filhos, após a morte do marido. “Meu sonho é ter minha casa. Se eu faltar, tenho certeza que a prefeitura não vai pagar aluguel para eles.Que seja em qualquer lugar ou tamanho. Mas acho que não vou conseguir. Sai prefeito, entra prefeito e eles não fazem nada”.

Não vieram

Foto: Agliene Mel

Em setembro de 2007, o governo federal liberou R$ 8,1 milhões para Ouro Preto. A verba era destinada à construção de cerca de 300 casas populares, que começaram a ser erguidas só em 2010. Seriam construídas 155 em Cachoeira do Campo, na Vila Alegre, 57 em Antônio Pereira, 40 no Santa Cruz e 45 em Santa Rita de Ouro Preto. Das casas prometidas, apenas 90 ficaram prontas em fevereiro de 2016 no Alto do Beleza. Para o pedreiro Odice Dutra dos Reis, 48, contemplado com uma propriedade em outubro de 2015, as casas novas têm problemas e não houve vistoria da prefeitura após a entrega. “Quando mudamos, chovia fora e dentro. Arrumei, mas há casas em que as pessoas precisam correr para o banheiro, porque só não molha lá.” As casas têm estrutura padrão: dois quartos pequenos, sala, banheiro e cozinha e cerca de 200m² para expansão e não são cercadas. Os proprietários podem construir muros e fazer outro cômodo, mas não podem mexer na estrutura. De acordo com o secretário, “as casas estão sendo liberadas aos poucos e as famílias têm 30 dias para relatar problemas”.

Além dessas, 200 residências para financiamento, referentes a protocolo de intenção firmado com a Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais (Cohab) em julho de 2015, seriam construídas em três terrenos nos bairros Santa Cruz, Caminho da Fábrica e no distrito de Antônio Pereira até junho de 2016. A Cohab informa que “os terrenos propostos já foram vistoriados e pré-aprovados por equipe técnica em setembro de 2015, mas precisam passar por análise da companhia. Até o momento, o município não encaminhou os documentos que comprovam a propriedade desses terrenos”. Roberto Leandro informa que nem todos os documentos foram enviados ainda devido à burocracia, que demanda tempo.


Até o fechamento do LAMPIÃO, o prefeito José Leandro não respondeu sobre os atrasos nas construções e entregas das moradias e sobre o valor existente no Fundo Habitacional do município para o investimento em habitação, além de não explicar quanto do recurso dado pelo Governo Federal existe. Não foi possível identificar quantas famílias foram indenizadas e quais os valores, e nem estabelecer quantas casas exatas foram prometidas e licitadas, já que o site da prefeitura está fora do ar e o Executivo não nos enviou os dados e documentos solicitados. Os vereadores de Ouro Preto também reclamam da falta de transparência sobre o tema, que vem sendo discutido na Câmara.

Problema antigo

Chico Rei

Foto: Priscila Ferreira

Joana de Cristo, 50, e o marido Francisco Faustino, 64, moram de favor em uma casa no Bairro São Francisco, em área de risco, perto do barranco que cedeu em 2012, matando dois taxistas. O casal faz parte do Movimento Chico Rei, criado em 25 de dezembro de 2015, quando por volta de 60 famílias, lideradas pela Associação Ouro Preto Moradia, Preservação e Cidadania e Central de Movimentos Populares de Belo Horizonte, ocuparam cerca de 16 hectares da fazenda Maria Soares, da empresa Novelis, em Saramenha. Para Joana, o Movimento Chico Rei é uma esperança de sair da área de risco. “Morar aqui é muito ruim, em época de chuva começa a cair barranco. A gente dorme com medo, porque se ele cair, mata a gente.”

Segundo o ex-vereador e ex-secretário de Governo de Ouro Preto Wanderley Rossi Junior, o Kuruzu, um dos organizadores do movimento, a ocupação pretende mostrar que existem terras boas para a construção de moradia digna e trazer uma proposta de bairro modelo, com infraestrutura, no terreno ocupado. “Empresas como a Novelis ficam com as terras boas da cidade. As pessoas que não conseguem pagar casas em áreas nobres como o Centro Histórico, disputando com estudantes e pessoas de alta renda, vão morar nas áreas de risco, se sujeitando a perigos. Faltam planejamento urbano e ações efetivas da prefeitura para resolver isso.”

Captação e edição: Rodrigo Sena. Confira no final da reportagem a letra completa da música de autoria do MC Fly**

Iniciada com 60 famílias, a ocupação ganhou visibilidade e passou a ter 640 pessoas cadastradas até a desapropriação do terreno. O presidente da entidade, Luciano Oliveira Silva, pré-candidato a vereador, enviou uma carta em setembro de 2015, solicitando uma reunião com a empresa e pedindo a doação de terras para a construção de casas populares. Em resposta, a Novelis informou que “todas as propriedades possíveis para doação já haviam sido anunciadas e comunicadas aos seus respectivos beneficiários até aquela data, não havendo mais a possibilidade de reabertura desse assunto.” Diante da ocupação, a empresa reafirmou que as terras são de sua propriedade e pediu a reintegração de posse. A liminar foi emitida em 29 de dezembro e a área foi desocupada em 21 de janeiro.

O movimento prosseguiu fazendo ocupações simbólicas entre janeiro e março. Em fevereiro levantaram o acampamento Chico Rei no terreno público da antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem) de Ouro Preto. As famílias utilizam o espaço para momentos de lazer e educação enquanto aguardam a liberação de terrenos para construção das casas. O secretário de Desenvolvimento Roberto Leandro garante que o problema de Ouro Preto não é terra, e sim recursos. A prefeitura tem trabalhado em medidas para solucionar as questões de quem mora em áreas de risco, afirma. “Nós [prefeitura] estamos entrando com vários projetos que vão dar possibilidades futuras para quem ainda não tem casa e para quem ainda mora em áreas de alto risco.” As ações são apenas a médio e longo prazo.

No domingo, 6, aconteceu cadastramentos e entrevistas com as famílias que fazem parte do movimento, na Febem. A ação ocorreu a pedido do promotor titular da 4ª Promotoria, Domingos Ventura. “Durante uma reunião que tivemos, o promotor solicitou que o Movimento organizasse um cadastro com as famílias que tenham dificuldades em pagar aluguel e daquelas que moram em áreas de risco muito alto. O cadastramento continuará no dia 13 de março, além de ter uma tarde de lazer”, informa o Kuruzu.

Território

Foto: Priscila Ferreira

Fundada no século XVIII, Ouro Preto, então Vila Rica, surgiu como território promissor pela riqueza em ouro e outros minérios valiosos. Após o declínio da extração mineral e a mudança da capital para Belo Horizonte, em 1897, a região sofreu grande êxodo populacional. A saída dos ouro-pretanos foi revertida a partir dos anos 1940, com a recuperação econômica local, influenciada pela industrialização. A cidade começou a atrair trabalhadores à medida que fábricas se instalavam. Uma das primeiras foi a Eletro Química Brasileira S/A de Ouro Preto (Elquisa), que mais tarde deu lugar para a Aluminium Limited do Canadá (Alcan), posteriormente Novelis do Brasil, controlada hoje pela Hindalco do Brasil.

Com a industrialização, novas construções surgiram na cidade. A partir de 1938, a expansão começou ser limitada, pois a cidade foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Nacional e, em 1980, se tornou Patrimônio Cultural da Humanidade. O título, dado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), reconhece o valor histórico do local e exige que se preserve o conjunto arquitetônico. Se tornaram inviáveis novas construções no Centro Histórico, área menos íngreme já ocupada por casarões da classe média alta e por repúblicas estudantis da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Famílias com baixo recurso para comprar, alugar ou construir no centro histórico, ocupam áreas periféricas da região, que em muitos casos são vulneráveis territorialmente.

A desigualdade de moradia de Ouro Preto surge logo após o fim da escravidão. Os negros alforriados, sem salários e sem moradia, tinham de ocupar terras periféricas e precárias. Com o tempo, o problema habitacional se agravou. O potencial turístico e a burocracia para realizar construções em áreas tombadas tornam o centro supervalorizado, com aluguéis entre R$ 1.000 e R$ 4.000. Enquanto que em bairros periféricos, os valores são mais acessíveis.

Para a geógrafa Regina Celly e a ambientalista Celênia Macedo, “as classes de menor poder aquisitivo são forçadas a viver em áreas menos atraentes e bonitas, menos dotadas de infraestrutura urbana, insalubres e periféricas. São excluídas de certos espaços”. Taquaral, São Francisco, Santa Cruz, Alto da Cruz, Alto das Dores e São Cristóvão são bairros em áreas de risco alto, segundo informações da Defesa Civil.

* Omitimos o sobrenome a pedido da entrevistada.

**Wallison Giovanne – MC Fly

"Pode me chamar de favelado, bandido, safado, de invasor.
Mas agora o povo reunido, que era excluído, finalmente acordou.
É por moradia que estamos lutando, não queremos guerra, só queremos paz.
Sair do aluguel, da pirambeira.
Pra área de risco eu não volto jamais.
Muita terra largada à toa e o povo sofrendo sem ter condição.
Chico Rei, começou a ocupação.
A terra é nossa!
Eu tô ligado pode explanar que eu sei
Começou a ocupação Chico Rei.
A terra é nossa!
Eu tô ligado pode explanar que eu sei
Começou a ocupação Chico Rei.
Pode me chamar de favelado, bandido, safado, de invasor.
Mas agora o povo reunido, que era excluído, finalmente acordou.
É por moradia que estamos lutando, não queremos guerra, só queremos paz.
Sair do aluguel e da pirambeira.
Pra área de risco eu não volto jamais.
Muita terra largada à toa e o povo sofrendo sem ter condição.
Chico Rei, começou a ocupação.
A terra é nossa!
Eu tô ligado pode explanar que eu sei
Começou a ocupação Chico Rei.
A terra é nossa!
Eu tô ligado pode explanar que eu sei, começou a ocupação Chico Rei.
A terra é nossa!
Eu tô ligado pode explanar que eu sei, começou a ocupação Chico Rei, Chico Rei, Chico Rei."

Leia a versão impressa da reportagem, publicada na edição 22 do Lampião.

CRÉDITOS

Texto: Hariane Alves e Stela Diogo
Foto da capa: Agliene Melquíades
Fotos: Agliene Melquíades e Priscila Ferreira
Design: Gabriella Visciglia
Audiovisual: Rodrigo Sena

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