Comadres

A singularidade da relação que vai além do profissional

Elas sabem a rotina de todos da casa, lavam, passam e cozinham. Se algo se perde, pode ter certeza que elas sabem o lugar exato onde achar. Por vezes, trabalham como despertador, tomando cuidado para que todos cumpram seus horários. Dão conselhos, cuidam e se preocupam.

A semelhança com a figura das mães é muito grande, mas elas são as comadres. Esse é o termo usado para denominar as mulheres que trabalham com serviços domésticos na cidade de Ouro Preto e o LAMPIÃO foi conhecer um pouco mais da vida delas.

DALVINHA

Dalva Martins da Cruz Ferreira, ou Dalvinha, como é conhecida, tem 51 anos e trabalha desde os 14. Dalvinha é comadre de duas repúblicas femininas na cidade, a República Éternamente, onde trabalha há 14 anos, e a República Penélope, há 11.

Fomos até a República Penélope conhecer um pouco mais de Dalvinha e do seu trabalho. Chegando lá, ela estava sentada e arrumada esperando a entrevista. Vaidosa, desmarcou nosso primeiro encontro porque queria ir ao salão arrumar o cabelo para aparecer bonita na gravação.

Um pouco tímida na frente das câmeras, Dalvinha se solta após um tempo de conversa e fala sobre sua vida. Já tem mais de 30 anos na profissão de comadre. Trabalhou muito tempo em casa de família e até em Belo Horizonte, mas há 14 anos trabalha apenas em repúblicas.

Para ela, a diferença de trabalhar em casa de família e em república é muito grande. Prefere as repúblicas por conta da flexibilidade de horários e da carga menor de serviço. Trabalha duas vezes por semana na República Penélope, no período da tarde, e uma vez na semana na República Éternamente. Mora no Bairro Piedade, em Ouro Preto, e vai trabalhar de ônibus. Não tem filhos e mora sozinha, é ela quem cuida da própria casa e se mantém a mais de 30 anos.

É contratada como diarista nas repúblicas e por isso não possui carteira assinada. As moradoras da República Penélope dizem que gostariam de contratá-la como doméstica durante toda a semana, mas devido aos gastos com o aluguel da casa, isso se torna inviável. Só teve carteira assinada uma vez enquanto trabalhava em casa de família. Da outra vez, trabalhou durante 14 anos em uma casa, mas saiu "com uma mão na frente e outra atrás". Apesar disso, diz que não se importa com a situação e que "entregou na mão de Deus".

Adotou as moradoras como filhas. A relação é bem parecida, brigam muito. Um dia é Dalvinha que está estressada e implica com as meninas. No outro, leva bronca por fazer as tarefas que não são suas, como arrumar o quarto de alguém e guardar as coisas onde só ela sabe. As meninas brigam, Dalvinha fica brava, mas depois passa. Apesar de tudo, elas são filhas para a comadre, assim como ela é mãe para as moradoras. No trabalho, diz que se sente em casa, à vontade. As meninas contam que Dalvinha limpa tudo, mexe em tudo, até onde não precisa, e dessa maneira vão se entendendo, numa relação que já dura mais de 10 anos.

Na cultura republicana de Ouro Preto existem os homenageados, que são pessoas queridas e amigas da casa que ganham um quadrinho na parede, igual aos ex-alunos. Em 2016, Dalvinha foi homenageada na República Penélope. Ganhou um quadrinho na parede, representação de todo carinho e consideração que compartilha com gerações de moradoras. Diz que sente falta de todas e que por ela estariam todas ali até hoje, mas sabe que elas precisam seguir em frente.

No começo deste ano, as República Éternamente e Penélope fizeram uma rifa para ajudar Dalvinha em um tratamento dentário. Saíram de casa em casa oferecendo as rifas até juntar o dinheiro necessário. O dinheiro arrecadado está guardado, esperando que a comadre comece o tratamento. 

Por fim, Dalvinha dá um recado, e ele é bem simples: seja Penélope ou Éternamente, a comadre ama todas como se fossem filhas.


MARIA MAGNA

Maria Magna tem 44 anos, é mãe de 5 filhos e há 20 anos trabalha como comadre na República Federal Masculina Consulado.

Fui até a república para encontrá-la e chegando lá encontrei uma Maria bastante animada para a entrevista. Logo tirou a touca que usava no trabalho para aparecer bonita no vídeo e nas fotos, se ajeitou no sofá ansiosa para falar.

Trabalhou durante alguns anos em casa de família na cidade, mas prefere a república, pois diz que lá cuidam melhor dela. Trabalhando há 20 anos dentro da mesma casa, Maria considera todos eles como filhos e fala que apesar da rotatividade de estudantes ao longo das gerações, adora todos. Diz que não briga com eles, mas os moradores levam bronca de vez em quando, principalmente quando alguma namorada dorme na casa e Maria fica com ciúmes.

Maria tem carteira assinada e recebe todos os benefícios previstos na lei. Ao contrário de Dalvinha, Maria conhece e tem relacionamento com outras comadres que trabalham lá perto. Para ela, sua única dificuldade no trabalho é um problema que tem na perna, e por vezes é preciso se afastar alguns dias, mas conta com a ajuda dos moradores.

Mora no Morro Santana, bairro de Ouro Preto, com seus filhos. Mesmo com o problema na perna, a locomoção para o trabalho é fácil, o ônibus para praticamente na porta de casa. Com 44 anos diz que já tem até netos. Nenhum de seus filhos ainda frequenta a universidade, mas diz que está nos planos e estão tentando. Apesar de adorar trabalhar na república, diz que não deixaria seus filhos morar em uma, prefere eles em sua casa.

Ela ainda possui relação com os ex-alunos da república e adora quando todos voltam em datas comemorativas e enchem a casa, é sua maior alegria. A pedido dos moradores, pergunto se ela tem algum preferido. Sem graça, Maria não sabe o que responder, ama todos igualmente.

No ano de 2015, Maria foi homenageada na República Consulado. Mostra com orgulho e carinho o quadrinho que possui na parede ao lado dos outros ex-alunos. Teve sua importância eternizada na história da república.

O recado final é bem parecido com o de Dalvinha: Maria ama a Consulado e é grata pela amizade que construiu ao longo dos 20 anos com todos que passaram por ali.

AS COMADRES E A LEI

Francine Maira de Oliveira, 28, advogada e especializada em leis trabalhistas, esclarece como funciona a lei que diferencia o trabalho de doméstica mensalista e o de diarista. Após a Lei Complementar 150/2015 da Regulamentação da PEC das Domésticas, ficou decidido que o trabalho doméstico é quando se presta serviço mais de dois dias durante a semana. Já o trabalho de diarista se caracteriza como aquele em que se presta serviço de um a dois dias para o mesmo contratante. A diarista, ao contrário da doméstica, não possui o direito à assinatura na Carteira de Trabalho, pois se entende que não existe o vínculo empregatício. Elas recebem apenas por dia trabalhado o valor combinado previamente com o contratante.

Em Ouro Preto, a maioria das comadres são contratadas como diaristas e trabalham de um a dois dias na semana. A maioria delas trabalha em mais de uma república durante a semana e, ocasionalmente, no fim de semana, quando limpam festas.

A carteira assinada no ambiente republicano se torna inviável devido ao alto custo com o aluguel que as repúblicas possuem. Quando possuem carteira assinada, as comadres geralmente trabalham em repúblicas federais, onde os estudantes não pagam aluguel.

Essa é a realidade de duas das muitas mulheres que trabalham como comadres dentro das repúblicas estudantis de Ouro Preto e Mariana. Constroem uma relação singular com esses estudantes. A maioria diz preferir trabalhar nas república por conta dessa relação, do cuidado de um com o outro e do respeito de quem as considera como mãe.


TEXTO: Daniela Ebner
FOTO: Daniela Ebner e Lettícia Lages
AUDIOVISUAL: Daniela Ebner