Mariana, a geografia do caos no passado e presente

Andar pelo Centro Histórico de Mariana é uma viagem entretempos. As janelas coloniais, marcas de um passado ainda vivo, espelham a dualidade entre ontem e hoje no reflexo de vidraças, muitas vezes, quebradas. A atmosfera criada a partir da arquitetura barroca ganha nova versão com carros driblando as ruas estreitas e turistas tirando selfies com smartphones nas portas das igrejas.

Mas as casas das ruas ladrilhadas, herança de um passado histórico marcado por disputas e exploração, pouco se assemelham às construções improvisadas que encontramos em regiões afastadas da cidade. Basta visitar as ocupações Novo Horizonte, no Bairro Morada do Sol, e Santa Clara, no Cabanas. Sem rede de esgoto, luz elétrica, abastecimento de água e asfaltamento adequados, as casas construídas com poucos recursos evidenciam a luta das mais de 1,3 mil famílias que moram nessas regiões. A nova Mariana é coadjuvante da histórica Mariana. Nas ocupações, as linhas de ônibus não passam, as compras do mercado não são entregues e as cartas não chegam.

A partir desses diferentes lugares, buscamos discutir a relação de pertencimento que os moradores de Mariana têm com a cidade, diante de um passado pouco preservado e de um futuro mal planejado.

Ocupações

Há 14 anos, a ocupação Santa Clara, localizada no Bairro Cabanas, foi iniciada. Sandro William Flores, 41 anos, líder da Associação de Moradores do Santa Clara, foi o segundo morador a ocupar o terreno. Na época, desempregado e sem condições de pagar aluguel, soube da ocupação por um amigo que havia construído um barraco na região, e viu a oportunidade como saída para conquistar a casa própria.

Segundo Sandro, no início, algumas casas foram derrubadas em ações de desocupação promovidas pela Prefeitura. Após essas ações, os moradores se mobilizaram e começaram a se unir em frente à casa escolhida pela polícia para ser demolida, impedindo a passagem das máquinas. Além disso, os vizinhos buscaram outra alternativa para impedir a ação: construíam as casas o mais rápido possível para diminuir a chance de perdê-las. A união entre os moradores é o pilar que sustenta a história da construção do bairro. “Como nós éramos os primeiros, todo mundo que vinha pedia pra deixar material de construção na nossa casa, e assim nós fomos conhecendo as pessoas e construindo aqui”, relembra.

Atualmente, a região conta com cerca de 3 mil moradores, instalados em casas no terreno que conquistou o título de bairro, mas que ainda não é regularizado pela Prefeitura. Serviços básicos como rede de esgoto, instalação de luz elétrica, água encanada, asfaltamento e coleta de lixo estão chegando aos poucos na região. Segundo Sandro, as ações de asfaltamento do bairro começaram no final do mandato do ex-prefeito Celso Cota, e a previsão é que as obras sejam finalizadas no mês de abril. As redes de esgoto e água encanada começaram a ser implantadas no final de 2016 e início de 2017, respectivamente. Já a coleta de lixo começou no final de fevereiro.

Do outro lado da cidade, no Bairro Morada do Sol, a ocupação Novo Horizonte, iniciada há cinco anos, tem história semelhante. Embora seja mais recente, a ocupação abriga número significativo de famílias, a maioria de baixa renda, sem condições de pagar aluguel e com o sonho de conquistar a casa própria. Diferente do Santa Clara, a região que abriga o Novo Horizonte é de difícil acesso, ruas irregulares de pedras e terra batida dão passagem para casas humildes construídas com poucos recursos.


A moradora Ingrid Dias, 19, relata as dificuldades de transitar pelo bairro. “Como a rua é toda de barro, em dias de chuva a gente tem que apoiar com as mãos no barranco pra conseguir subir pra casa”, conta. Segundo Lúcia*, moradora da ocupação, a polícia já passou na região para alertar os moradores que o lugar é irregular. “Os policiais chegaram dizendo que aqui ninguém é dono não, que a gente tá correndo risco”, conta. Além da sensação de medo constante, os moradores do Novo Horizonte sofrem com a falta de serviços básicos e o preconceito de pessoas que não conhecem a região. Vizinhos de Lúcia já ouviram comentários desagradáveis de pessoas da cidade tachando os moradores da ocupação como vagabundos. “Aqui nós não somos vagabundos, não. Todo mundo trabalha”, acrescenta.

As ruas das ocupações, batizadas com nomes de pedras preciosas como Rubi, Diamante e Esmeralda no Novo Horizonte, e União, Esperança, e Conquista no Santa Clara, são as marcas de pessoas que estão em luta pela moradia e pelo reconhecimento na cidade, que validam sua identidade pela ação coletiva em busca de assegurar melhores condições de vida.

Pertencimento

Segundo informações da Secretaria de Obras e Planejamento Urbano de Mariana, as terras onde estão situadas as ocupações pertencem à empresa Companhia Mina da Passagem (CMP). Em entrevista ao LAMPIÃO, o subsecretário da pasta, Raphael D’Angelo, revelou que o processo de desapropriação das terras está em andamento na Justiça. “Já foram definidos perímetros para regularização dessas terras, mas ainda não foi feito o decreto de desapropriação. A Prefeitura ainda não fez o pagamento para o proprietário dos terrenos por motivos financeiros”, argumenta.

Embora as áreas ainda não estejam desapropriadas, no Santa Clara e no Alto do Rosário - área também ocupada, próxima ao bairro Novo Horizonte -, há prédios de habitação social construídos pela gestão municipal anterior. A área onde foram erguidas as habitações foi desocupada para construção dos prédios. As famílias que moravam na região passaram a receber o benefício do aluguel social até que as moradias fossem entregues. Segundo informações do site do Ministério Público, o aluguel social é um recurso assistencial mensal destinado a atender, em caráter emergencial, famílias que não têm casa própria. As famílias desalojadas recebem a quantia equivalente ao aluguel de uma casa popular por prazo determinado.

As vagas nos apartamentos são destinadas apenas às famílias cadastradas pela Prefeitura, cerca de 1.117, que serão escolhidas por sorteio. Mas a demanda ultrapassa o número de apartamentos construídos, apenas 74. Os moradores que não foram contemplados continuam inseguros em relação ao futuro de suas casas. “Nós não queremos morar de graça, só queremos ser reconhecidos e ter cada um o seu canto, a sua casa”, relata Sandro.

Os apartamentos têm dois quartos, sala, cozinha, banheiro e uma área de serviço. No entanto, as obras ainda não foram entregues e estão abandonadas. A Prefeitura justifica que os prédios estão abandonados porque ainda não foram entregues, já que não houve a desapropriação da área. Questionada sobre o processo de construção ter permanecido mesmo sem a desapropriação concluída, a secretaria informou que as obras continuaram pois os processos de construção e de desapropriação andavam simultaneamente na Justiça. “O processo da construção continuou, mas o de desapropriação foi interrompido, e logo em seguida as obras também foram abandonadas pelas empreiteiras contratadas por falta de pagamento da Prefeitura”, admite o subsecretário D’Angelo.

Enquanto não são realizadas ações efetivas para regularizar essas regiões, a população vive com a constante sensação de medo, insegurança e exclusão. “A gente sabe que faz parte da cidade, mas mesmo assim se sente excluído. Muita gente fala mal daqui sem conhecer e, depois que conhece, muda de ideia. Falta união”, desabafa Sandro.

Patrimônio

Enquanto relega ao abandono prédios que nem foram concluídos, a Prefeitura tenta restaurar o patrimônio que também se deteriora. Em janeiro de 2016, o Prefeito de Mariana, Duarte Júnior, assinou uma ordem de serviço que autorizava a restauração da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. A medida simbolizou o pontapé inicial das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), iniciativa do Governo Federal desenvolvida pelo Ministério da Cultura em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Mariana foi a cidade que obteve o maior repasse em Minas Gerais, cerca de R$ 67,2 milhões. O dinheiro foi destinado a 15 ações de restauração integral de monumentos, casarões e igrejas aprovadas.

Atualmente, existem duas obras em andamento, a restauração da Igreja do Rosário e da Catedral da Sé, ambas estruturas importantes na construção da identidade dos moradores e da história de Mariana. O atraso na conclusão das obras chamou atenção na comunidade, pois alterou o dia a dia dos fiéis e impactou as paisagens da cidade. Segundo a coordenadora da Comunidade Nossa Senhora do Rosário, Maria Raquel Cardoso, algumas atividades pastorais que aconteciam na igreja, hoje, são realizadas na casa de amigos. De acordo com ela, o espaço só é aberto aos domingos para celebração de missas.

Em entrevista ao LAMPIÃO, o Iphan informou detalhes que justificam o atraso das reformas. De acordo com o instituto, como são obras realizadas em etapas, os atrasos já eram esperados. A demora da Prefeitura para responder às licitações é o principal fator dos atrasos. Na Igreja do Rosário, a reforma estrutural já foi concluída. A expectativa é que a obra seja entregue até o primeiro semestre deste ano.

O velho e o novo

A escritora e pesquisadora Hebe Rôla, 85, mora em Mariana desde criança. Ela conta que, ao longo de sua vida, viu a cidade se transformar. "Nem todos compreendem a importância das ruas por onde caminham. Essa é uma grande falha na relação de indivíduo e sociedade", reflete. De acordo com a pesquisadora, uma maneira interessante para preservar a identidade da cidade é investir na educação patrimonial, recurso essencial não apenas como política pública atuante, mas para tornar a população marianense ciente de sua própria história.

A união entre governo e população proporciona um caminho viável à preservação do patrimônio material e imaterial. O Projeto Casas do Patrimônio, idealizado pelo Iphan, busca formas de implementar ações de educação patrimonial com atividades institucionais, mas, segundo Flora Passos, arquiteta do Escritório do órgão em Mariana, a iniciativa não contempla a cidade pois o Iphan não possui o número necessário de funcionários da área técnica para trabalhar no município. De acordo com o subsecretário de Obras e Planejamento Urbano, Raphael D'Angelo, não é possível discutir Patrimônio Histórico como uma coisa só, pois o crescimento da cidade demanda processos de adaptação às novas realidades. A estratégia, segundo ele, é fazer com que o município cresça diante dessa pluralidade.

No Centro Histórico da cidade, o Museu Casa Alphonsus de Guimaraens recebe escolas para visitas educativas. Numa dessas excursões, ao se deparar com uma pintura antiga de Mariana, a professora da turma perguntou aos alunos quais mudanças eles viam na representação da cidade. Sem pensar duas vezes, uma aluna respondeu: as ocupações não estão no quadro. O detalhe, que passaria despercebido por turistas, é certeiro aos olhos da estudante, que não se enxerga na Mariana protegida como patrimônio. Essa é a busca de quem vive à margem: reconhecimento.


*Nome fictício a pedido da fonte.

TEXTO: Igor Mattos e Mayara Portugal
FOTO: Fernanda Covalski
DESIGN IMPRESSO: Wigde Arcangelo
DESIGN DIGITAL: Mariana Morais
AUDIOVISUAL: Carmem Guimarães