O "bicho-papão" não mora aqui

"Come a sopa, senão vem o cigano". Isso são histórias antigas, mas ainda há muros por derrubar. 

 Cheguei. 14h33 assinala o relógio enquanto rodo o volante para limar as imperfeições do estacionamento. Um Renault branco, de 1993, não causa estranheza aos moradores do Bairro 31, em Vila Nova de Famalicão. Carros não, mas os tripés e as câmaras já saltam à vista. 

Ao passar para o outro lado da rua, eu e Germano - porta-voz do bairro – percebemos que temos algo em comum: desconfiança. Ele das lentes, eu, mobilizado pelo estereótipo, dos ciganos. Basta um "fique à vontade" recíproco para que a barreira se quebre: Germano rapidamente se familiariza com a câmara e eu rapidamente me sinto cómodo.

Estou no Bairro 31, em Calendário. Na mesma freguesia, a Urbanização das Bétulas é um dos seis bairros sociais que existem em Vila Nova de Famalicão. Lameiras, já bem no centro da cidade, junto à estação rodoviária, é o terceiro bairro que entra na história - neste nem todos são ciganos, ao contrário dos outros.

O sol escondeu-se de manhã, mas apareceu à tarde para a Alice colocar a roupa ao sol. Não vai em fotografias, mas convida a conhecer as traseiras do "31". Germano faz a visita guiada e em pequenos passos, com orgulho, vai mostrando os cantos de uma casa que é de todos. “Aqui o ringue para os miúdos jogarem à bola quando vêm da escola, ali, à beira das galinhas, o cantinho para os convívios feito por nós. Força, tire fotos”.

Uma cara que não é costume deambular por estes lados desperta a atenção. “É da Câmara [Municipal]? É que se é, peça para darem um jeito ao campo da bola”. A curiosidade aguça principalmente os mais novos. A tarde é de folga e até na “Escolinha” – um espaço de apoio aos estudos construído no bairro – não há que fazer. Germano diz que todos andam na escola e que até gostam, porque foram fazendo amigos por lá. A tendência mantém-se “no Bairro das Bétulas, já aqui em cima”, onde todas crianças andam na escola. Na incerteza, fica o futuro nos estudos.

Colocar o dia de amanhã nas mãos do ensino não é uma realidade comum. A população cigana portuguesa que tem o secundário ou um grau de ensino superior não chega aos 3%, segundo um inquérito liderado pela Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais realizado em 2012. Acumulam-se motivos como o casamento muito jovem ou a necessidade de trabalhar, mas as soluções não foram ainda encontradas.

Em maio de 2013, a Resolução do Conselho de Ministros aparecia com a “Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas”, um plano com o objetivo de integrar esta população em todos os parâmetros sociais. O processo só termina em 2020, mas a meio caminho uma das prioridades para a educação continua em falta: “melhorar o conhecimento da situação escolar dos alunos e formandos ciganos na escola”.

A informação continua a ser escassa e sem divulgação pública sobre os esforços nacionais. Mas os objetivos não se ficam por aqui. As pretensões desta estratégia passavam por atingir a meta dos 40% de crianças ciganas com a escolaridade básica concluída em 2016 e, em 2020 ter 30% de jovens ciganos com o ensino secundário ou profissional. O abandono escolar, outro dos problemas levantados, também é posto em causa, colocando-se a meta numa redução de 60% até 2020.

Aqui, ninguém se assusta com o futuro. Estão juntos em tudo e para tudo. Repetem-no sempre que se fala das atitudes de desprezo por parte da sociedade, onde, no topo das que mais doem, estão os olhares de reprovação.

Uma visita que serviria para conhecer a comunidade e registar modos de vida, tornou-se numa reunião entre novos e velhos, amigos de longa data e novos conhecidos. Fala-se da cultura cigana, de uma forma de falar que, retratada em livro, daria um bestseller e contribuições de Germano e Toxyna para o enriquecimento da cultura nacional. Germano e outros ciganos foram personagens do filme “Ciganos Canibais”,  com direito a “helicópteros e tudo”. Toxyna é rapper e foi membro dos Kartel #31, uma banda que faz a ligação entre três bairros em Vila Nova de Famalicão. 

“Tugas, ciganos e pretos”

Quatro membros de três bairros diferentes, de três etnias distintas. Juntos pela “liberdade, união e respeito”, três palavras que deram nome ao último álbum dos Kartel #31. Sentados na estação de Vila Nova de Famalicão, um rap de improviso acompanhado de guitarra, junto à linha que liga Porto São Bento e Braga. Foi assim que começaram.

Não fazem música pela intervenção ou para chamar a atenção. O que os move é o gosto pela música e a vontade de criar coisas novas. Já não são só os ciganos que ouvem música cigana, nem os "pretos" que ouvem hip-hop, explica Toxyna.

Unir três etnias distintas, de três bairros diferentes soa agora como tarefa cumprida e natural. Depois do "Liberdade, União, Respeito", dissuadiram-se as fronteiras entre etnias e mostrou-se que os bairros são só nomes.

Uma casa cinzenta que faz seis anos

O dia vai frio e cinzento e Maria Paula traz o xaile às costas para a aconchegar. Hoje, lá em casa, cortou-se a rotina. Não haverá a "sopa quentinha" do costume. A poucas ruas do Bairro 31 mora uma comunidade idêntica à de Germano e Toxyna: a Urbanização das Bétulas.

Se não há sopa quente, os problemas de que Maria Paula e Lelo se queixam diariamente tornam-se mais presentes. Há o frio, a água - que em dias de chuva se infiltra pelas paredes -, as baratas, as ratazanas que correm à noite, as escadas estreitas, escuras e difíceis de subir. “Venha ver. Imagine se alguém do último andar precisa de ir para o hospital. Bem que morre. A maca dos bombeiros não passa aqui”, alerta quem mora nos pisos superiores.

Em dezembro de 2010, as 30 famílias que viviam em barracas há 30 anos, receberam com agrado a noticia da mudança para as habitações. Ao todo eram cerca de 150 pessoas que partiam para uma realidade diferente. Na altura, as declarações feitas aos telejornais quer de moradores quer de membros da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão (CMVNF), perspetivavam o fim dos problemas que começaram a aparecer anos mais tarde.

A “nova” casa que a CMVNF construiu para a comunidade cigana parece à primeira vista um alojamento “jeitoso”. Para o “Sr. Lelo”, marido de Maria Paula, as aparências dos primeiros tempos cedo se desmoronaram nos problemas que foram aparecendo. Mas para quem está junto há 40 anos, o que faz mais confusão é o “barulho das crianças que andam aqui à solta no bairro”, lamenta Maria Paula. “Há cada vez mais”, acrescenta.

Esta é uma das principais diferenças que separam a Urbanização das Bétulas do Bairro 31. As crianças, durante a tarde, andam espalhadas pelo átrio do alojamento. Os próprios residentes das Bétulas reconhecem isso. Não existe um projeto educativo como a “Escolinha”. Sobra tempo para dançar na rua.

Há mais gente nas ruas, mas esse é um facto difícil de provar. As estimativas prevalecem sobre números certos. Em 2001, o movimento SOS Racismo, através de um inquérito feito junto de Câmaras Municipais apontava para cerca de 21 mil. Um ano mais tarde, a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) estimava para um intervalo: 50 000 a 60 000. Para a Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), em 2011, havia entre 40 000 a 60 000 ciganos em Portugal.

“Era já ali abaixo”

Quem mora aqui não se estranha porque antes do cimento, havia barracas. O sentimento geral é de que o cimento não trouxe o que se esperava. Entre críticas à governação de Paulo Cunha, é-se nostálgico dos tempos em que moravam “já ali abaixo”. Na cabeça de Maria Paula é simples: “Eu se pudesse voltava, estávamos melhor lá. Aqui não dá”.

Ali abaixo é como quem diz na rua ao lado, perto da estação ferroviária. Os terrenos que as barracas ocupavam deram lugar a um “interface rodoviário”, utilizado pela Refer como uma espécie de parque de estacionamento. Lino recorda os tempos “em que tinha a melhor barraca de todas”. Deixou muito dinheiro naquela barraca: “Era um luxo, aquilo regalava a vista a quem lá fosse. Apesar de tudo, éramos mais felizes.”

Mas a vida em barracas não era exclusiva a Vila Nova de Famalicão de 2008. Segundo dados desse ano, recolhidos pela Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura, “45% inquiridos viviam em habitações que não tinham pelo menos uma das seguintes instalações básicas: cozinha, casa de banho, chuveiro ou banheira no interior da habitação e eletricidade”.

Aquando da transição, Paulo Cunha, na altura vice-presidente da CMVNF afirmava que a cidade passava a ser um “concelho sem barracas”. “Hoje é o dia em que essa imagem vai começar a desaparecer da memória dos famalicenses: em primeiro lugar no realojamento e depois na demolição das barracas.”, afirmava o agora presidente da CMVNF à RTP.

Talvez seja por isso que a ilusão da proteção, que o cimento traria, doa tanto a quem passa o dia perto de casa. É que Maria Paula e Lelo estão juntos há muito tempo. Os dias em que corriam as feiras e saíam de casa às 6h da manhã numa carrinha para voltar já tarde no mesmo dia, acabaram.

Mas o sentimento que a comunidade expressa é diferente de ingratidão, como aponta Maria Monteiro, habitante da urbanização. Veio com o resto da comunidade para cima há seis anos. Reconhece que a comunidade poderia ter feito um melhor trabalho na preservação do local: “A câmara vai limpando, mas os ciganos sujam”.

Há quem, entre as vozes críticas do papel da CMVNF, critique a pouca comunicação que a instituição mantém com os moradores. Este papel cabia a Lelo que agora, mais velho e doente, deixou-se disso. Antes era por ele que passava o processo de mediação.

A função de elo há muito que quebrou. A saúde já não é a mesma e até mesmo as feiras já pertencem ao passado. Lelo lembra os tempos em que na Câmara toda a gente o conhecia e respeitava. "Agora, não há quem dê voz aos ciganos", lamenta. 

Tudo limpinho, tudo pago e um orgulho imenso de quem trabalhou toda a vida para erguer a casa. Lelo luta contra o estereótipo do cigano "trapaceiro" que o acompanhou toda a vida, mostrando o seu lar, onde reforça: "É tudo meu, não devo nada a ninguém".

O quartel também tem base aqui

A influência dos Kartel #31 é palpável em Vila Nova de Famalicão. No Bairro 31, quando o assunto surge é instantaneamente reconhecido. Lino, filho de Lelo, reconhece de imediato o nome de Toxyna, afinal a base dos Kartel não é só no 31. O quarteto tem “generais” de três bairros sociais da cidade.

Do 31, passando pelas Bétulas, chegamos às Lameiras. Um desses "generais" veio de lá. Diogo Vieira, conhecido por Pluma nas hostes musicais. A história das Lameiras está colada ao percurso dos Kartel #31. “O 'União, Liberdade e Respeito' foi gravado lá”. O estúdio agora já não existe. Passaram 15 anos e Pluma conta a história sentado na cadeira da sua barbearia.

“Estamos com o projeto [Kartel 31] parado porque as nossas vidas assim o exigiram. Membros da banda ausentaram-se do país, eu próprio estive na Suíça. Quando estive lá, comecei a ponderar tirar um curso de barbeiro, mas já fazia isto na tropa.”, relembra.

Mas é da banda e do tempo que passou a viajar que guarda as melhores memórias. A música permitiu a descoberta de realidades que não conhecia. Marcharam pelas Queimas, Festa do Avante e até deu tempo para ver Espanha e França. Nasceu num bairro social. É o “tuga” do grupo. “Todos somos provenientes de bairros sociais. Hoje não me faz diferença ter nascido lá. Adaptei-me à sociedade e a sociedade adaptou-se a mim”, atira.

É da Barbearia Pluma que olha para o que se passa lá fora, nas ruas de Vila Nova de Famalicão, mas não descura o mundo. Se ainda crê que a discriminação está presente nas ruas da cidade, o que se passa lá longe, por terras que os Kartel não pisaram, também o preocupa. A extrema-direita que emerge na Europa ou os ares cinzentos que chegam dos Estados Unidos não lhe deixam dúvidas: "Tínhamos muito para falar se quiséssemos voltar a reunir".

Mas não desanima. O tempo em que o pai de Toxyna e o de Pluma eram uma excepção nas salas de aula é passado. “O meu filho hoje já tem mais miúdos de etnia cigana na escola do que no meu tempo”. Admite que o caminho para a igualdade e para o respeito ainda é longo: “Toda a gente, no seu ciclo mais fechado, é capaz de falar sobre os ciganos”.

O "bicho-papão" já não mora aqui

A pele de Pluma, pintada e cheia de cor, combina com o ambiente da barbearia decorada por quadros, santos e notas. O número 31 estampado no pescoço é imponente. "O meu filho nasceu nesse dia, o primeiro estúdio era no Bairro 31, na casa do Toxyna". Foi lá que começaram os primeiros ensaios. 

Sentado numa grade no campo de futebol que Germano espera ser nivelado, Toxyna dá o exemplo das mães: “As mães em casa dizem para comermos a sopa se não vem o cigano ou o bicho-papão”. Diz que o racismo não é tão presente nas ruas. Mas, entre quatro paredes, “toda a gente” pode dizer mal dos ciganos.

E se as mães não ensinam, segundo Toxyna “esse trabalho é feito nas streets”. É lá que os “brancos convivem com ciganos, com pretos”. Ambos sentem a necessidade de se deitarem abaixo muros que dificultem o convívio de ideias, experiências e de música.

Para Pluma, o que os Kartel #31 fizeram há 15 anos nasceu dessa necessidade: a de quebrar barreiras. “Em [Vila Nova de] Famalicão, existe uma comunidade cigana muito grande, mostramos que miúdos vindos de bairros sociais podiam estar ocupados com música e dança, não na vadiagem”. Agora, passa a tocha a quem quiser continuar o trabalho. Afinal, o que falta muitas vezes “é o empurrão”.