EXPLORAÇÃO

O véu da normalidade

por Pâmela Carvalho e Quéfren de Moura

Na toca do coelho

Vou te contar por que você está aqui: você sabe de algo. Não consegue explicar o que, mas você sente. Você sentiu a vida inteira: há algo errado com o mundo. Você não sabe o que é, mas há. Como um zunido na sua cabeça enlouquecendo você. Foi esse sentimento que o trouxe até mim. Você sabe do que estou falando?

— Da Matrix?

— Você deseja saber o que ela é?

— Sim.

— A Matrix está em todo lugar. À nossa volta. Mesmo agora, nesta sala. Você pode vê-la quando olha pela janela ou quando liga sua televisão; você a sente quando vai para o trabalho, quando vai à igreja, quando paga seus impostos. É o mundo que foi colocado diante dos seus olhos para que você não visse a verdade.

— Que verdade?

— Que você é um escravo. Como todo mundo, você nasceu num cativeiro, numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão para a sua mente. Infelizmente, é impossível dizer o que é a Matrix. Você tem de ver por si mesmo. [...] Se tomar a pílula azul a história acaba, e você acordará na sua cama, acreditando no que quiser acreditar. Se tomar a pílula vermelha ficará no País das Maravilhas, e eu lhe mostrarei até onde vai a toca do coelho.

A EXPLORAÇÃO MASCARADA

(Foto: Wikimedia Commons)

Matrix, filme dos irmãos Wachowski de 1999, é a história de um mundo diferente do que conhecemos. A realidade não é exatamente aquela para a qual fomos apresentados quando nascemos. Máquinas criaram um sistema ao qual a humanidade foi conectada, com o fim de mantê-la inerte e consumir sua energia. Os seres humanos, assim, são escravos adormecidos, vivendo em uma simulação da realidade, de cuja existência a maioria não têm consciência e da qual tampouco podem escapar sozinhos.

Parece agoniante, não? Mas viver num mundo no qual a exploração existe é como estar preso à Matrix, um sistema que desumaniza as relações, no qual a normalidade do cotidiano mascara uma dura verdade.

Neste primeiro Claro! Especial decidimos falar sobre formas veladas ou silenciosas de exploração, mascaradas por um discurso que procura "justificá-las". São situações e comportamentos cujas implicações muitos não se dão conta, mas que reiteram a exploração – ou, tendo consciência, a omitem sob uma máscara de pretensa normalidade.

NEO

O nome do personagem principal de Matrix é Neo, um anagrama de “One”, o escolhido. Mas também significa “Novo”. No início do filme Neo é Thomas A. Anderson, um jovem que, como outros, nasceu conectado à Matrix, ignorando que o mundo em que vivia era diferente do que parecia. Mas Neo convivia com uma sensação estranha. Ele tinha, como disse Morpheus, “uma vaga intuição de que havia algo de errado com o mundo”.

Velada e sutil... como uma pedrada

"O apedrejamento de Santo Estêvão" , Rembrandt (Wikimedia Commons)

Muitas vezes a opressão e o abuso estão estrategicamente escondidos na fala de pessoas como eu e você. Inclusive respaldados por argumentos socialmente aceitos. É preciso estar atento para percebê-los e desarticulá-los, principalmente quando aparecem discretamente, quase sem querer ser notados, na "normalidade" da vida. Quer ver só?

Você já viu esse tipo de comentário?*

“Filha minha tem que andar na linha. Ajudar a mãe em casa, fazer comida, lavar a roupa, arrumar a cama dos irmãos. Isso ajuda a não sair por aí, vestida como biscate, indo a festinhas com má companhia. Se as filhas dos outros querem mostrar a bunda por aí, que mostrem. Mas a minha não vai se vestir como uma vagabunda.”
“Odeio ser mal servido. Se estou pagando – e pagando caro! – quero ter um atendimento decente. Se o garçom traz pedido errado, demora demais ou não me atende como mereço, com um sorriso no rosto, isso me deixa indignado. Sou capaz de fazer um escândalo e colocar o garçom em seu lugar.”
“O cara é novo. É óbvio que ele vai ser trolado. Se damos trabalho nosso para ele fazer? Lógico. A gente chama de novato imbecil, mas tudo na boa. Ah, e se pagar de eficiente, a gente fica puto. Vai querer chegar já botando banca? Não, né? Precisa respeitar os que já estão aqui, a hierarquia. Ele tem mais é que passar por isso, até se adaptar e outro novato chegar. Todo mundo passa por isso.”
“Minha namorada nunca transou. Eu, morrendo de vontade aqui, e ela, cheia de frescura, sempre adiando, dizendo que não… Puta conversinha. Tô a fim de sair com ela e aproveitar uma hora que ela vá ao banheiro e botar umas coisinhas na bebida dela. Só pra ela ficar mais alegre e facilitar o meu lado. Daí ela zonza, eu aproveito. Pô! Eu não sou o namorado? Eu tenho direito. Ela que tá demorando pra ceder. Não vou fazer nada que no fundo ela não queira.”
“Nem consigo acreditar que entrei na facul. Tô mó feliz. Só no trote foi estranho, porque eu fui amarrada num poste. A gente fica um pouco chateada com essas coisas, pô. Me senti mal, mas ninguém me obrigou. Os veteranos são muito de boa. Só me disseram que se eu não participasse de tudo o que propuseram eu ia ficar de fora. E eu não quero ficar de fora, sabe? Também gastei mó grana pagando bebida pra todo mundo. Mas sabe como é, né? Bixos têm que pagar mesmo.”
“Sou exigente porque tenho que manter os empregados na linha. Eles só têm que retribuir o que faço por eles. Alguns eu preciso lembrar o tempo todo que eu é que pago o salário. Uns já estão velhos para o mercado de trabalho, outros são incompetentes mesmo… e outros sabem que não merecem o que ganham. Vamos ser honestos: se saírem, não vão conseguir outro emprego. Então, eu falo mesmo. E eles continuam trabalhando pra mim porque sabem que tenho razão. E sabem quem é que manda, né?”


“A galera tá fazendo uma lista das bixetes mais gatas, e também das mais fáceis do curso, e do que elas curtem e fazem no sexo. Fico bolado com essa lista, porque eles falam umas coisas bem pesadas, mas os caras dizem que não tem nada a ver, que tá de boa porque todas as meninas têm que passar por isso, já que estão na universidade. Universitária têm que curtir essas paradas.”
“Eu não acho que mulher seja explorada não. A gente já tá no século XXI, poxa. As mulheres já podem trabalhar, ter o próprio negócio. Eu não tenho do que reclamar, tô casada, tenho filhos. Quando eu era solteira, gostava de trabalhar, mas aí a gravidez acabou com tudo. O pai, no começo, ficou bravo porque eu descuidei da pílula. Disse que a culpa era minha e que não queria saber de bebê, não. Mas homem é assim mesmo, a gente tem que ficar no pé para eles aceitarem coisa séria. Quando nossa filha nasceu, ele até ajudou a trocar algumas fraudas. O problema é que ele não tem muita paciência. Quando ela chora, eu que tenho que ver o que ela precisa. Ela dá bastante trabalho. Ele também. Tive que largar meu emprego para cuidar dos dois.”



* Apesar de serem fictícias, essas falas são mais comuns do que gostaríamos. O que fazer quando se escuta algo do tipo? E você, como se sente?

Cala-te, oprimido!

Guardas da Agência Nacional de Detetives de Pinkerton reprimem greve de trabalhadoras em Ohio, 1884, por Joseph Becker

A exploração empurrada para baixo do tapete

A sociedade atual se estruturou e se apoiou em relações de exploração para ser construída. Os grandes impérios exploraram as colônias, os senhores enriqueciam às custas de escravos e servos, homens conquistaram dominância no mercado de trabalho oprimindo as mulheres. Essas inter-relações são estudadas por nós desde as aulas de história do ensino médio. Mas as olhamos com tanto distanciamento, que é como se todas elas fizessem parte de um passado remoto. As analisamos como quem estuda um quadro antigo famoso: aquilo mexe conosco, choca. Só que é passado, é abstrato, não é palpável. Já passou. Será? A verdade é que essas formas de exploração, infelizmente, ainda estão presentes na nossa realidade.

Um exemplo da atualidade do tema é o fato de as mulheres ainda serem oprimidas na carreira e no âmbito sexual e psicológico. Além disso, a abolição da escravatura ou a criação de leis trabalhistas jamais impediram a exploração de empregados por seus patrões. Essa ideia é defendida pelo professor do Departamento de Relações Públicas da Escola de Comunicações e Artes da USP, Mauricio Felicio: “Viver em sociedade é participar constantemente de negociações e trocas. Uma das formas de compreender a exploração é pensar nela como as barreiras que impedem uma pessoa de ser a autora principal de suas ações e decisões. Ou seja, a exploração trabalhista não acabou junto com a abolição da escravatura, assim como a exploração sexual não se encerrou com qualquer revolução antiga ou recente”, declara.

Na intenção de calar o explorado, é interessante para o explorador construir o discurso de que a opressão não existe, que ela ficou no passado. Felicio acredita que, por essa razão, a exploração de pessoas e grupos, que ainda acontece ativamente na sociedade, está atualmente velada para muitos olhos. “Enquanto a exploração parece sutil para algumas pessoas que, por vezes, insistem em não olhar mais atentamente para as violências sociais, para aqueles que são as suas vítimas mais constantes esta opressão é evidente”, pontua. Isso ficaria ainda mais claro ao analisarmos a resistência da elite em aceitar a existência de grupos sociais mais frágeis, que precisariam de ajuda estatal. “O discurso meritocrático que entrou em voga nos últimos tempos faz parte de uma cortina que distorce a função do Estado e anestesia as pessoas, para que não assumam sua responsabilidade pelo bem coletivo, não apenas pelo bem individual”, completa o professor.

As revoluções do passado, portanto, “empurraram para baixo do tapete” formas de exploração. As opressões ainda existem, mas foram veladas para manter privilégios. Ainda vivemos em uma sociedade patriarcal, desigual e racista, e fechar os olhos para isso é ser conivente com o sofrimento dos explorados. “Construímos prédios para esconder as favelas. E quando não vemos mais os problemas, podemos fingir que não sabemos nada sobre eles”, conclui Mauricio Felicio.

Saindo da Matrix

Algumas pessoas estão tão acostumadas a conviver com a exploração em seu cotidiano – praticando-a ou sendo objeto dela – que é difícil mudar sua maneira de enxergar as coisas. E quando, não só como discurso, mas como prática, está introjetada na mente e nos valores, se torna tão destrutiva quanto formas escancaradas de opressão – ou até mais.

Será possível romper com os ciclos de exploração ao nosso redor? A resposta não é óbvia ou simples. O primeiro passo talvez seja se dar conta de que coisas assim existem e de sua gravidade. É não se render ao conformismo. Ao perceber que há algo que não está certo e sair do casulo do individualismo que impera nas relações humanas, rejeita-se a apatia. Mas, para isso, também é preciso assumir a responsabilidade de romper o discurso dominante, facilmente justificável por um sem número de razões.

O “despertar” ou desconectar-se da Matrix, mostrado no filme, desmascara a exploração velada, sutil em seu discurso, e pode dar lugar a relações genuínas, justas e horizontais. Mas não há garantias, e, de qualquer modo, demanda esforço! O mundo em que vivemos está repleto de grandes e pequenas situações degradantes, desumanizantes, acontecendo bem ao nosso redor. É preciso não fechar os olhos nem se calar. É imprescindível romper o silêncio, debater e denunciar a opressão, quebrando a hipocrisia e o cinismo da exploração velada.

Sair da Matrix é rejeitar a exploração de si mesmo e dos outros. Fácil? Não é! É preciso suportar o peso da responsabilidade de agir diferente. Mas como no mundo real não há fórmulas ou respostas prontas, não podemos dizer que é só uma questão de decidir entre a pílula azul e a pílula vermelha. Para descobrir, afinal, até onde vai a toca do coelho, não há um caminho certeiro. Mas, ao menos debater e lançar luz a estes temas já é um primeiro passo.